domingo, 1 de maio de 2011

Sobre uma generalização do conceito de curvatura de Riemann e espaços com torção (nota de Cartan apresentada por Borel)

Numa nota recente mostrei, num universo de Einstein com um ds2 dado o tensor de energia atracado a cada elemento de volume desse universo pode ser definido geometricamente; este é o tensor que, igualado a zero, nos fornece as leis da gravitação num espaço desprovido de matéria. A definição que dei faz com que a curvatura da universo dependa de uma certa rotação associada com todo o contorno infinitesimal fechado e esta rotação foi introduzida na base do conceito de transporte paralelo de Levi-Civita. Este último conceito por si, apesar de ter sido originalmente apresentado com recurso a considerações geométricas, é deveras difícil definir com precisão sem qualquer cálculo. Mas é possível, assim me parece, mostrar a sua maior importância, generalizando mesmo o conceito de espaço; ao mesmo tempo nos conduzirá a imagens geométricas de universos materiais fisicamente mais ricos que o nosso, pelo menos como o é tipicamente considerado; também nos elucidará sobre a verdadeira razão das leis fundamentais que governam o tensor da energia (lei da simetria, lei da conservação).
Restrinjamo-nos  ao caso de três dimensões cuja generalização à quarta dimensão é trivial. Imagine-se um espaço que, numa vizinhança de qualquer ponto, possui todas as características do espaço Euclideano. Os habitantes deste espaço saberão, por exemplo, como localizar pontos infinitamente próximos de um ponto A por intermédio dum sistema de três eixos ortogonal tendo este ponto A como origem; mas suporemos ainda que eles estão munidos com uma lei que os permita orientar, relativamente ao sistema centrado no ponto A, todos os triplos coordenados tendo a sua origem em A' próximo de A; em particular, indicar-lhes-á um sentido para dizerem se duas direcções, uma vinda de A e outra vinda de A', são paralelas. Por último, tal espaço será definido pela lei da orientação mútua (de natureza Euclideana) de dois sistemas de três eixos cujas origens sejam infinitamente próximas.
Um espaço do tipo precedente não está completamente definido pelo seu ds2. O ds2, de facto, determina apenas a parte da operação que permite a passagem dum sistema com origem em A para um sistema infinitamente próximo com origem em A', nomeadamente uma translação A→A'; adicionalmente, como sabemos, fixando ds2, uma rotação pode ser definida de acordo com uma lei arbitrária qualquer.
Com isto em mente, quando descrevemos um contorno infinitesimal fechado começando no ponto A e retornando ao mesmo ponto, a divergência entre o espaço considerado e o espaço Euclideano mostrar-se-á do seguinte modo. Apliquemos um triplo coordenado a qualquer ponto M do contorno; para passar do triplo aplicado em M para o triplo aplicado no ponto infinitamente próximo M', precisamos de fazer uma translação infinitesimal e rotação cujas componentes conhecemos relativamente ao triplo móvel com origem em M.
Imagine-se que esta colecção de deslocamentos infinitesimais é efectuada num espaço Euclideano começando num sistema de três eixos (triplo) inicial arbitrariamente escolhido. Quando o ponto M do espaço não Euclideano que começa em A e lá retorna após ter descrito um caminho fechado, no espaço Euclideano, não recuperaremos o triplo inicial, mas para o obtermos será necessário proceder a um deslocamento complementar cujas componentes serão bem definidas relativamente ao triplo inicial. Este deslocamento complementar é independente da lei segundo a qual atribuímos um triplo a cada ponto M do contorno.
Sumariamente, associadas com cada caminho infinitesimal fechado do espaço em consideração, estão uma translação infinitesimal e rotação (da ordem da magnitude da superfície da área limitada pelo caminho) e que expressa a divergência entre entre este espaço e o espaço Euclideano. A rotação pode ser representada por um vector com origem em A e a translação por um par. Podemos então provar a seguinte lei de conservação: se considerarmos um volume infinitesimal, os vectores e os pares associados com os diferentes elementos da superfície que limita o volume estão em equilíbrio.
Então temos uma imagem geométrica dum meio material contínuo em equilíbrio, unicamente sob a acção de forças elásticas, mas numa situação em que estas forças seriam expressas em cada elemento de superfície, não apenas por uma força única (tensão ou pressão), mas por um par (torsão).
Retornemos ao caso onde somente nos é dado ds2. Um cálculo simples mostra que, entre todas as leis de orientação mútua de dois triplos com origens infinitamente próximas compatível com o ds2 dado, só existe um para o qual a translação associada com um caminho infinitesimal fechado arbitrário é nula. É esta lei que leva ao conceito de deslocamento paralelo de Levi-Civita. O par em questão desaparece e é por isso que o tensor elástico satisfaz a lei de simetria.
No caso geral quando existe uma translação associada com um caminho infinitesimal fechado, podemos dizer que o espaço é diferente do Euclideano em dois aspectos: 1) por uma curvatura no sentido de Riemann, que resulta numa rotação; 2) por uma torção que resulta numa translação.
Num espaço com curvatura e torsão, o método dos triplos móveis, como no espaço Euclideano, permite-nos construir uma teoria de curvatura de curvas (e até mesmo de superfícies). Uma linha recta será caracterizada pela propriedade de ter curvatura (relativa) nula em todos os seus pontos; isto é, de preservar localmente a mesma direcção. Uma linha recta não é mais necessariamente o caminho mais curto de um ponto para outro; é-o num espaço desprovido de torsão; excepcionalmente também o pode ser em determinados espaços com torsão especiais.
Um exemplo muito simples deste último caso é o seguinte. Imaginemos um espaço S que corresponde ponto-a-ponto com o espaço Euclideano E e a correspondência preserva distâncias. A diferença entre os dois espaços será como se segue: dois sistemas ortogonais originados em dois pontos infinitamente próximos A e A' de E serão paralelos quando os sistemas de E podem resultar um do outro por intermédio de uma translação helicoidal a uma dada taxa e num determinado sentido (sentido directo, por exemplo) com a linha que une as suas origens como eixos. As linhas de S, então, correspondem a linhas de E: continuam a ser geodésicas. O espaço S assim definido admite um grupo de transformações a seis parâmetros; será o nosso espaço usual visto pelos observadores cujas percepções serão distorcidas. Mecanicamente iria corresponder a um meio com pressão constante e torsão constante.
Acrescentarei as considerações precedentes, as quais, do ponto de vista da mecânica, estão relacionadas com o belo trabalho dos srs. E. e F. Cosserat sobre a acção Euclideana, também estão relacionados com a teoria dos espaços generalizados de H. Weyl e podem também ser estendidos.

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