quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Espira que roda num campo magnético

Algumas bicicletas, em particular as pasteleiras, trazem um dínamo que permite gerar uma corrente eléctrica quando lhe é transferido movimento da roda da frente. Um circuíto eléctrico é montado, tendo o dínamo como gerador que alimenta um farol com um selector que permite regular a intensidade da luz. Porém, quanto maior for a intensidade da luz definida no selector, maior será a resistência ao movimento da roda da frente causado pelo dínamo. Este facto pode ser explicado com base na lei da conservação da energia. Com efeito, desprezando outras formas de dissipação, a energia dissipada pela lâmpada advém do trabalho realizado pela força que a roda da bicicleta exerce sobre o dínamo. A força total necessária para manter a bicicleta a uma velocidade constante terá, portanto, de incluir a parte da força responsável por acender a lâmpada.
É interessante averiguar, do ponto de vista do electromagnetismo, qual é a origem dessa força, considerando, como aproximação, uma espira que se encontra a rodar num campo mangético uniforme. Nos exercícios habituais, calcula-se a força electromotriz produzida na espira pela rotação. No entanto, não é tão frequente encontrar uma determinação da força aplicada sobre a espira quando o circuito eléctrico é fechado por uma resistência. Será aqui feito um esboço dessa determinação.
Considere-se a espira circular de raio \(\rho\) definida pelas equações paramétricas
\[\left\lbrace\begin{array}{l}x=\rho\cos\lambda\\ y=0\\ z=\rho\sin\lambda\end{array}\right.\]
que se supõe rodar, com velocidade angular constante \(\omega\), em torno do eixo das cotas. Ao fim do tempo \(t\), cada ponto da espira parametrizado pelo parâmetro \(\lambda\), encontrar-se-á na posição dada por
\[\left\lbrace\begin{array}{l}x=\rho\cos\lambda\cos\left(\omega t\right)\\ y=\rho\cos\lambda\sin\left(\omega t\right)\\ z=\rho\sin\lambda\end{array}\right.\]
O vector tangente à espira é dado pela derivada da posição em ordem ao parâmetro \(\lambda\), isto é,
\[\left\lbrace\begin{array}{l}\frac{\partial x}{\partial\lambda}=-\rho\sin\lambda\cos\left(\omega t\right)\\ \frac{\partial y}{\partial\lambda}=-\rho\sin\lambda\sin\left(\omega t\right)\\ \frac{\partial z}{\partial\lambda}=\rho\cos\lambda\end{array}\right.\]
O produto vectorial da posição pelo vector tangente permite determinar a direcção da normal ao círculo definido pelo condutor. Tem-se, portanto,
\[\left\vert\begin{array}{ccc}\vec{i} & \vec{j} & \vec{k}\\ \rho\cos\lambda\cos\left(\omega t\right) & \rho\cos\lambda\sin\left(\omega t\right) & \rho\cos\lambda\end{array}\right\vert=\rho\sin\left(\omega t\right)\vec{i}-\rho\cos\left(\omega t\right)\vec{j}\]
onde \(\vec{i}\), \( \vec{j}\) e \(\vec{k}\) são, respectivamente, os versores ao longo do eixo das abcissas, do das ordenadas e do das cotas. O versor normal é dado, portanto, por
\[\vec{n}=\sin\left(\omega t\right)\vec{i}-\cos\left(\omega t\right)\vec{j}\]
Seja \(\vec{B}=B\vec{j}\) o campo magnético que se supõe uniforme e direccionado ao longo do eixo das ordenadas. O fluxo \(\phi\) do campo sobre o círculo definido pelo condutor é dado por
\[\phi=\int_S\vec{B}\cdot\vec{n}dS=\int_S B\vec{j}\cdot\left(\sin\left(\omega t\right)\vec{i}-\cos\left(\omega t\right)\vec{j}\right)dS\]
isto é,
\[\phi=-\pi\rho^2B\cos\left(\omega t\right)\]
A força electromotriz obtém-se a partir da variação temporal do fluxo do campo magnético ao longo da superfície. Esta é dada por
\[\mathcal{E}=-\frac{d\phi}{dt}=-\pi\rho^2B\omega\sin\left(\omega t\right)\]
Se a espira constituir um circuito eléctrico fechado através de uma resistência \(R\), a sua intensidade será dada por
\[I=-\frac{\mathcal{E}}{R}=-\frac{1}{R}\pi\rho^2B\omega\sin\left(\omega t\right)\]
Ora,
\[d\vec{l}=-\rho\sin\lambda\cos\left(\omega t\right)\vec{i}-\rho\sin\lambda\sin\left(\omega t\right)\vec{j}+\rho\cos\lambda\vec{k}\]
A força de interacção entre a corrente que se desloca sobre a espira e o campo magnético calcula-se como
\[\vec{F}_B=Id\vec{l}\times\vec{B}=-\frac{1}{R}\pi\rho^3B\omega\sin\left(\omega t\right)\left\vert\begin{array}{ccc}\vec{i} & \vec{j} & \vec{k}\\ -\sin\lambda\cos\left(\omega t\right) & -\sin\lambda\sin\left(\omega t\right) & \cos\lambda\end{array}\right\vert\]
isto é,
\[\vec{F}_B=-\frac{1}{R}\pi\rho^3B^2\omega\sin\left(\omega t\right)\left(\cos\lambda\vec{i}-\sin\lambda\cos\left(\omega t\right)\right)\]
Para que a espira mantenha uma velocidade de rotação constante é necessária a aplicação de uma força \(\vec{F}=-\vec{F}_B\) em cada um dos seus pontos. O trabalho total realizado pela força \(\vec{F}\) durante o intervalo de tempo \(t\) é dado por
\[W=\int_0^{2\pi}\int_0^t\vec{F}\cdot d\vec{r}d\lambda\]
isto é,
\[\frac{dW}{dt}=\int_0^{2\pi}\vec{F}\cdot\frac{d\vec{r}}{dt}d\lambda\]
onde, calculando a derivada da posição de cada elemento da espira em ordem ao tempo,
\[\frac{d\vec{r}}{dt}=-\rho\omega\cos\lambda\sin\left(\omega t\right)\vec{i}+\rho\omega\cos\lambda\cos\left(\omega t\right)\vec{j}\]
O trabalho desenvolvido pela força que deverá ser aplicada à espira para que esta mantenha a sua velocidade angular constante por unidade de tempo é dado por
\[\frac{dW}{dt}=\int_0^{2\pi}\frac{1}{R}\pi\rho^4B^2\omega^2\sin^2\left(\omega t\right)\cos^2\lambda d\lambda=\mathcal{E}I\]
Este resultado está de acordo com o princípio da conservação da energia, uma vez que \(\mathcal{E}I\) proporciona a potência dissipada pela resistência.

terça-feira, 13 de julho de 2021

O princípio dos trabalhos virtuais aplicado à dinâmica

De acordo com o princípio dos trabalhos virutais, se um sistema de pontos \(P_i\), cada um sujeito a um sistema de forças \(\vec{F}_{ij}\), se encontrar em equilíbrio num determinado instante, então
\[\sum_{ij}{\vec{F}_{ij}\cdot \delta\vec{r}_i}=0\]
qualquer que seja o deslocamento infinitesimal \(\delta\vec{r}_i\), consistente com as condições aplicadas ao sistema nesse instante. Na determinação da variação infinitesimal denotada por \(\delta\), o tempo \(t\) é considerado como constante, em contraste com a variação infinitesimal total \(d\). De facto, quaisquer que sejam as direcções dos movimentos infinitesimais que possam ser aplicados ao sistema, a resultante das forças aplicadas segundo essas direcções deverá anular-se para que o sistema se encontre em equilíbrio estático no intervalo de tempo considerado.
De acordo com a lei da inércia, se a parte de um sistema que se encontre em movimento rectilíneo e uniforme não for actuado por uma causa externa então irá manter esse movimento rectilíneo e uniforme. A intensidade da causa externa determina-se, portanto, considerando a variação da sua quantidade de movimento. Se uma partícula for actuada por uma força externa ao longo de uma mesma direcção, a intensidade da força deverá ser determinada, em parte, pela variação da sua velocidade. Porém, dado que, considerando que tal partícula é divisível em partículas idênticas mais elementares, a quantidade de movimento deverá ser proporcional ao número dessas partículas. A constante de proporcionalidade é designada por massa inercial e é denotada por \(m\). Se \(\vec{v}\) for a velocidade da partícula ao longo de uma determinada direcção e \(m\) a sua massa, então a sua quantidade de movimento será dada por \(\vec{p}=m\vec{v}\). Se a partícula for submetida a uma causa externa, a sua intensidade é medida pela variação dessa quantidade de movimento, isto é,
\[\vec{F}=\frac{d\vec{p}}{dt}\]
De acordo com o princípio da sobreposição dos movimentos, o movimento de uma partícula que seja submetida a um conjunto de forças é dado pela soma dos movimentos rectilíneos resultantes da aplicação independente de cada uma das forças. Em partícular, se um conjunto de forças aplicadas a uma partícula se equilibrarem, a soma das variações dos respectivos movimentos anular-se-á e a partícula encontrar-se-á em repouso ou mover-se-á com velocidade constante ao longo de uma linha recta.
Suponha-se que um sistema de forças \(F_{ij}\) é aplicado sobre um conjunto de partículas \(i\) de massa \(m_i\), segundo a direcção dos versores \(\vec{u}_{ij}\) durante um instante infinitesimal. Defina-se uma direcção ao longo da qual o sistema se pode mover durante esse instante dada pelos vectores infinitesimais \(\delta\vec{r}_i\). Ora, a variação do movimento da partícula \(i\) devido à força \(\vec{F}_{ij}\) pode ser decomposto na soma de dois movimentos, um segundo a direcção do vector \(\delta\vec{r}_i\) e o outro segundo uma direcção que lhe seja perpendicular. A força \(\vec{F}_{ij}\) fica determinada, neste caso, pela soma das forças, uma segundo a direcção do vector \(\delta\vec{r}_i\) e a outra segundo a direcção perpendicular. Após formulação tem-se
\[\left(-\frac{d}{dt}\left(m_i\frac{ds_{ij}}{dt}\right)+F_{ij}\right)\vec{u}_{ij}\cdot \delta\vec{r}_i=0\]
Aqui \(s_{ij}\) representa a distância percorrida pela partícula \(i\), segundo a direcção da força, \(\vec{u}_{ij}\), considerando apenas o movimento devido à sua acção. A soma sobre todas as forças e partículas resulta na seguinte expressão para o princípio dos trabalhos virtuais no seu caso mais geral, nomeadamente,
\[\sum_{ij}{\left(-\frac{d}{dt}\left(m_i\frac{ds_{ij}}{dt}\right)+F_{ij}\right)\vec{u}_{ij}\cdot \delta\vec{r}_i}=0\]
Como no instante em que é aplicado o princípio dos trabalhos virtuais o movimento é considerada rectilíneo, \(\vec{u}_{ij}\) deverá ser considerado como constante, advindo
\[\sum_j{\frac{d}{dt}\left(m_i\frac{ds_{ij}}{dt}\right)\vec{u}_{ij}}=\frac{d}{dt}\left(m_i\frac{d}{dt}\sum_j{s_{ij}\vec{u}_ij}\right)=\frac{d}{dt}\left(m_i\frac{d\vec{r}_i}{dt}\right)\]
onde
\[\vec{r}_i=\sum_j{s_{ij}\vec{u}_{ij}}\]
O princípio dos trabalhos virtuais escreve-se na forma equivalente como
\[\sum_i{\left(-\frac{d}{dt}\left(m_i\frac{d\vec{r}_i}{dt}\right)+\sum_j{F_{ij}\vec{u}_{ij}}\right)\cdot \delta\vec{r}_i}=0\]
Esta é a forma habitualmente usada na resolução de problemas de Dinâmica. Se se pretender que o o sistema se encontre em equilíbrio, é suficiente observar que se deve ter \(\vec{r}_i=0\), reduzindo a expressão anterior ao caso da Estática.
Suponha-se que se pretende determinar a força que está na origem da trajectória de uma partícula de massa \(m\) dada por \(\vec{r}(t)\), supondo que não são aplicadas quaisquer restrições. Neste caso, \(\delta\vec{r}\) será um vector arbitrário advindo, do princípio dos trabalhos virtuais,
\[\left(-\frac{d}{dt}\left(m\frac{d\vec{r}_i}{dt}\right)+\vec{F}\right)\cdot\delta\vec{r}=0\]
Como \(\delta\vec{r}\) é arbitrário, então
\[m\frac{d^2\vec{r}}{dt^2}-\vec{F}=0\]
que corresponde à conhecida lei da Dinâmica para o caso de partículas livres. Se se assumir que a partícula de massa constante \(m\) se pode mover apenas ao longo de uma linha dada por \(\vec{r}(s)\) então
\[\delta\vec{r}=\frac{d\vec{r}}{ds}ds\]
e o princípio dos trabalhos virtuais advém da forma
\[\left(-m\frac{d^2\vec{r}}{dt^2}+\vec{F}\right)\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}ds=0\]
o que conduz à equação
\[\frac{d^2\vec{r}}{dt^2}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}-\vec{F}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}=0\]
isto é,
\[m\left(\frac{ds}{dt}\right)^2\frac{d^2\vec{r}}{ds^2}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}+m\frac{d^2s}{dt^2}\frac{d\vec{r}}{ds}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}-\vec{F}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}=0\]
que, como \(\frac{d\vec{r}}{ds}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}=1\) e, consequentemente,
\[\frac{d^2\vec{r}}{ds^2}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}=0\]
se reduz a
\[m\frac{d^2s}{dt^2}-\vec{F}\cdot\frac{d\vec{r}}{ds}=0\]
Segue-se daqui que a componente da força segundo a tangente à curva sob a qual a partícula está limitada a mover-se é medida pela alteração da quantidade de movimento ao longo dessa tangente.
O mesmo argumento serve para determinar as equações que determinam o movimento de uma partícula que esteja restrita a mover-se sobre a superfície determinada por \(\vec{r}\left(u^1,u^2\right)\), onde \(u^i\) são parâmetros cujos índices são sobrescritos, em conformidade com as notações de geometria diferencial. Se se definirem os vectores tangentes
\[\left\lbrace\begin{array}{l}\vec{e}_1=\frac{\partial\vec{r}}{\partial u^1}\\ \vec{e}_2=\frac{\partial\vec{r}}{\partial u^2}\end{array}\right.\]
então
\[\delta\vec{r}=\vec{e}_1du^1+\vec{e}_2du^2\]
Definem-se os coeficientes \(g_{ij}=\vec{e}_i\cdot\vec{e}_j\) e \(\Gamma_{ij}^k\) que satisfazem
\[\frac{\partial\vec{e}_i}{\partial u^j}=\Gamma_{ij}^1\vec{e}_1+\Gamma_{ij}^2\vec{e}_2+\kappa\vec{n}\]
em que \(\vec{n}\) corresponde ao vector normal à superfície.
Dado que
\[\frac{\partial\vec{e}_i}{\partial u^j}=\frac{\partial\vec{e}_j}{\partial u^i}\]
devido à igualdade das derivadas cruzadas, segue-se que \(\Gamma_{ij}^k=\Gamma_{ji}^k\).
Tem-se, para uma trajectória arbitrária sobre a superfície,
\[\frac{d\vec{r}}{dt}=\frac{du^1}{dt}\vec{e}_1+\frac{du^2}{dt}\vec{e}_2\]
e, aplicando nova derivação,
\[\begin{array}{l}\frac{d}{dt}\left(m\frac{d\vec{r}}{dt}\right)=\left(\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^1}{dt}\right)+m\sum_{i=1}^2{\sum_{j=1}^2{\Gamma_{ij}^i\frac{du^i}{dt}\frac{du^j}{dt}}}\right)\vec{e}_1+\\ +\left(\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^2}{dt}\right)+m\sum_{i=1}^2{\sum_{j=1}^2{\Gamma_{ij}^i\frac{du^i}{dt}\frac{du^j}{dt}}}\right)\vec{e}_2+\kappa'\vec{n}\end{array}\]
Suponha-se ainda que a força \(\vec{F}\) se escreve, na nova base, como
\[\vec{F}=F^1\vec{e}_1+F^2\vec{e}_2+F^N\vec{n}\]
Considerando as expressões anteriores no princípio dos trabalhos virtuais, obtém-se
\[\left\lbrace\begin{array}{l}\sum_{i=1}^2g_{1i}\left(\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^i}{dt}\right)+m\sum_{j=1}^2{\sum_{k=1}^2{\Gamma_{jk}^i\frac{du^j}{dt}\frac{du^k}{dt}}}-F^i\right)=0\\ \sum_{i=1}^2g_{2i}\left(\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^i}{dt}\right)+m\sum_{j=1}^2{\sum_{k=1}^2{\Gamma_{jk}^i\frac{du^j}{dt}\frac{du^k}{dt}}}-F^i\right)=0\end{array}\right.\]
O sistema anterior pode ser escrito na forma matricial como
\[GP=0\]
onde \(G=\left\lbrack g_{ij}\right\rbrack\) é a matriz constituída pelos coeficientes métricos e \(P\) é o vector coluna cujas entradas são dadas por
\[\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^i}{dt}\right)+m\sum_{j=1}^2{\sum_{k=1}^2{\Gamma_{jk}^i\frac{du^j}{dt}\frac{du^k}{dt}}}-F^i\]
Dado que a matriz \(G\), sendo as suas entradas dadas pelos produtos escalares dos vectores da base, é invertível, o sistema anterior é equivalente a
\[\left\lbrace\begin{array}{l}\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^1}{dt}\right)+m\sum_{i=1}^2{\sum_{j=1}^2{\Gamma_{ij}^1\frac{du^i}{dt}\frac{du^j}{dt}}}-F^1=0\\ \frac{d}{dt}\left(m\frac{du^2}{dt}\right)+m\sum_{i=1}^2{\sum_{j=1}^2{\Gamma_{ij}^2\frac{du^i}{dt}\frac{du^j}{dt}}}-F^2=0\end{array}\right.\]
Segue-se da equação anterior, fazendo \(F^i=0\), que se a projecção da força sobre o plano tangente à superfície for nula, isto é, se a força for normal à superfície, então a partícula, sendo animada de uma velocidade inicial, terá a sua trajectória contida numa geodésica.
A combinação linear das equações anteriores permite escrever
\[\sum_{i=1}^2\sum_{j=1}^{2}g_{ij}m\frac{du^j}{dt}\left(\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^i}{dt}\right)+m^2\sum_{k=1}^{2}\sum_{l=1}^{2}\Gamma_{kl}^i\frac{du^k}{dt}\frac{du^l}{dt}-F^i\right)=0\]
Dado que
\[\Gamma_{kl}^i=\frac{1}{2}\sum_{m=1}^2g^{im}\left(\frac{\partial g_{mk}}{\partial u^l}-\frac{\partial g_{kl}}{\partial u^m}+\frac{\partial g_{lm}}{\partial u^k}\right)\]
onde \(\left\lbrack g^{ij}\right\rbrack\) é a matriz inversa de \(\left\lbrack g_{ij}\right\rbrack\), isto é,
\[\sum_{i=1}^2g_{ij}g^{im}=\left\lbrace\begin{array}{ll}1, & j=m\\ 0, & j\ne m\end{array}\right.\]
segue-se que
\[\sum_{ij,k,l=1}^2g_{ij}\frac{du^j}{dt}\Gamma_{kl}^i\frac{du^k}{dt}\frac{du^l}{dt}=\frac{1}{2}\sum_{j,k,l=1}^{2}\frac{du^j}{dt}\left(\frac{\partial g_{jk}}{\partial u^l}-\frac{\partial g_{ki}}{\partial u^j}+\frac{\partial g_{ij}}{\partial u^k}\right)\frac{du^k}{dt}\frac{du^l}{dt}\]
A troca da ordem da soma em \(k\) e\(j\) permite concluir que
\[\sum_{j,k,l=1}^{2}\frac{du^j}{dt}\left(\frac{\partial g_{jk}}{\partial u^l}-\frac{\partial g_{ki}}{\partial u^j}+\frac{\partial g_{ij}}{\partial u^k}\right)\frac{du^k}{dt}\frac{du^l}{dt}=\sum_{j,k,l=1}^{2}\frac{du^j}{dt}\frac{\partial g_{jk}}{\partial u^l}\frac{du^k}{dt}\frac{du^l}{dt}\]
isto é,
\[\sum_{j,k,l=1}^{2}\frac{du^j}{dt}\left(\frac{\partial g_{jk}}{\partial u^l}-\frac{\partial g_{ki}}{\partial u^j}+\frac{\partial g_{ij}}{\partial u^k}\right)\frac{du^k}{dt}\frac{du^l}{dt}=\sum_{j,k=1}^{2}\frac{dg_{jk}}{dt}\frac{du^j}{dt}\frac{du^k}{dt}\]
A expressão atrás considerada que resulta da combinação linear das equações das geodésicas adquire a forma
\[\sum_{i,j=1}^{2}\left(g_{ij}m\frac{du^j}{dt}\frac{d}{dt}\left(m\frac{du^i}{dt}\right)+\frac{1}{2}\frac{dg_{ij}}{dt}m\frac{du^i}{dt}m\frac{du^j}{dt}-g_{ij}m\frac{du^j}{dt}F^i\right)=0\]
Não é difícil verificar que a equação anterior reduz a
\[\frac{1}{2}\frac{d}{dt}\left(g_{ij}m\frac{du^i}{dt}m\frac{du^j}{dt}\right)-\sum_{i,j=1}^2g_{ij}m\frac{du^j}{dt}F^i=0\]
Porém, a expressão compreendida sob o sinal de diferencial corresponde à norma \(p\) do momento da quantidade de movimento da partícula. Se a projecção da força sobre a superfície for nula, será constante o módulo do momento da quantidade de movimento. No caso em que a projecção é nula e a massa é constante, a partícula, estando animada de uma velocidade inicial, irá mover-se sobre a geodésica com velocidade constante.
Considerem-se agora duas partículas, \(A\) e \(B\), de massas \(m_A\) e \(m_B\). Ambas as partículas movem-se, mantendo constante a distância entre si. A partícula \(A\) move-se com aceleração constante ao longo de uma linha horizontal. Ambas as partículas encontram-se sujeitas à força gravítica, considerada constante, segundo a direcção vertical. O princípio dos trabalhos virtuais constitui uma forma simples de determinar as equações que descrevem tal movimento.
Seja \(\vec{r}_A=\left(x_A,y_A,z_A\right)\) e \(\vec{r}_B=\left(x_B,y_B,z_B\right)\) os vectores que determinam a posição das partículas \(A\) e \(B\) num determinado referencial. Suponha-se que, nesse referencial, a partícula \(A\) esteja limitada a mover-se sobre a recta horizontal de equação \(y_A=h\). Se se denotar por \(a\) a aceleração constante da partícula \(A\) ao longo da recta considerada e por \(v\) a sua velocidade inicial, então a sua trajectória é dada pelas equações paramétricas, no referencial em que a partícula se encontra em repouso no instante inicial sobre a origem, a uma altura \(h\) do plano \(xOy\),
\[\left\lbrace\begin{array}{l}x_A=\frac{1}{2}at^2\\ y_A=0\\ z_A=h\end{array}\right.\]
Dado que, no decurso do movimento do sistema, a distância entre as partículas se pretende constante, isto é
\[\sqrt{\left(x_B-x_A\right)^2+\left(y_B-y_A\right)^2+\left(z_B-z_A\right)^2}=l\]
as coordenadas da partícula \(B\) poderão ser escritas na forma
\[\left\lbrace\begin{array}{l}x_B=\frac{1}{2}at^2+l\cos\varphi\sin\theta\\ y_B=l\sin\varphi\\ z_B=h-l\cos\varphi\cos\theta\end{array}\right.\]
Denotando por \(\vec{r}=\left(x_B,y_B,z_B\right)\), determina-se, por derivação,
\[\begin{array}{l}\frac{d^2\vec{r}}{dt^2}=a\vec{i}+\left(\frac{d^2\varphi}{dt^2}+\sin\varphi\cos\varphi\left(\frac{d\theta}{dt}\right)^2\right)\vec{e}_\varphi+\\ +\frac{1}{\cos\varphi}\left(\frac{d}{dt}\left(\cos\varphi\frac{d\theta}{dt}\right)-\sin\varphi\frac{d\theta}{dt}\frac{d\varphi}{dt}\right)\vec{e}_\theta\end{array}\]
onde \(\vec{i}\) é o versor alinhado com o eixo das abcissas e
\[\begin{array}{ll}\vec{e}_\varphi=\frac{\partial\vec{r}}{\partial\varphi}, & \vec{e}_\theta=\frac{\partial\vec{r}}{\partial\theta}\end{array}\]
são os vectores que assumem a direcção das tangentes ao vector de posição quando se varia apenas uma das coordenadas. Os pesos aplicados a cada uma das partículas \(A\) e \(B\) são, respectivamente, \(P_A=-m_Ag\vec{k}\) e \(P_B=-m_Bg\vec{k}\), em que \(g\) representa a aceleração gravítica considerada constante e \(\vec{k}\) é o versor que assume a direcção do eixo das cotas.
Dado ser conhecido o movimento da partícula \(A\), esta pode ser removida do princípio dos trabalhos virtuais por já se encontrar em equilíbrio. Assim,
\[\left(m_B\frac{d^2\vec{r}}{dt^2}+m_Bg\vec{j}\right)\cdot\delta\vec{r}=0\]
Considerando, sucessivamente, a variação apenas em ordem a \(\varphi\) e depois em ordem a \(\theta\), tem-se, em primeiro lugar, \(\delta\vec{r}=\vec{e}_\varphi d\varphi\) e, em segundo lugar, \(\delta\vec{r}=\vec{e}_\theta d\theta\). A sua consideração no princípio dos trabalhos virtuais permite obter o sistema de equações
\[\left\lbrace\begin{array}{l}l\left(\frac{d^2\varphi}{dt^2}+\sin\varphi\cos\varphi\left(\frac{d\theta}{dt}\right)^2\right)+\left(g\cos\theta-a\sin\theta\right)\sin\varphi=0\\ l\left(\frac{d}{dt}\left(\cos\varphi\frac{d\theta}{dt}\right)-\sin\varphi\frac{d\theta}{dt}\frac{d\varphi}{dt}\right)+g\sin\theta+a\cos\theta=0\end{array}\right.\]
A massa \(B\) ficará, portanto, sujeita a um movimento pendular sobre a qual actuam a força gravítica e a força inercial dada pela sua ligação à massa \(A\). O ponto de equilíbrio do pêndulo será dado por \(\varphi=0\) e \(\theta=\theta_0\) que satisfaz a relação
\[g\sin\theta_0+a\cos\theta_0=0\]
uma vez que, nestas condições, a solução das equações é dada por \(\varphi=0\) e \(\theta=\theta_0\). Isto deve-se ao facto das projecções da força gravítica e da força inercial devida à aceleração sobre a tangente ao movimento permitido do pêndulo se anularem, como seria de esperar.

sábado, 1 de maio de 2021

Uma proposta de ontologia

Introdução

O problema dos universais, isto é, a consideração de que as propriedades dos objectos, tais como a cor ou forma, existem no mundo concreto ou são meramente conceitos abstractos ou resultado do processo da linguagem tem sido há muito debatido. A dificuldade parece centrar-se no objecto de estudo da metafísica que consiste na totalidade do que existe e no princípio de que a caracterização do total poderá não ser possível a partir da caracterização das suas partes observáveis pelos sentidos. Dentro desta lógica, é natural assumir que muitas das propriedades que se podem percepcionar sobre parte da realidade não sejam extensíveis à sua totalidade. Pode-se assumir, por exemplo, que o facto de se observarem cores nos objectos não implica que a totalidade seja constituída por objectos com cores ou se tais propriedades são manifestações de algo mais elementar. Uma propriedade que deverá ser estendida sobre a totalidade é a que pode ser definida pelo predicado "existe". Sem esse pressuposto não há objecto de estudo. Resta responder à questão de quais classes ontológicas se podem definir sobre a totalidade e como se podem explicar os universais da linguagem comum.
No que se segue exponho uma proposta de ontologia inspirada na ideia de primestado considerado em O conceito de categoria ontológica: um novo enfoque cuja construção parte da consideração das limitações que devem ser reconhecidas sobre o fenómeno da percepção, daquilo que pode ser percebido pelos sentidos e tornado inteligível, da psicologia humana e das relações entre indivíduos, ao invés da assunção de que seja possível conceber a realidade, tal e qual como esta é, apelando apenas à fundamentação lógica e racional sobre extrapolações do que se tenta observar.
Dado que o que se pode observar do mundo exterior é do domínio da física, em contraposição à metafísica dos sentidos mentais, não me parece que seja completamente descabida a sua discussão aqui. De facto, parece-me que uma abordagem baseada nas limitações da percepção permite identificar aspectos metafísicos naquilo que se considera ser estabelecido como cientificamente provado. O exemplo mais marcante talvez seja a impossibilidade de determinar, por meio da experiência, que o centro de massa de um corpo macroscópico que, sujeito a uma resultante de forças nula, assume um contínuo de posições ao longo de um segmento de recta definido entre os pontos \(A\) e \(B\), percorrendo intervalos de magnitudes iguais em intervalos de tempo iguais. Mesmo após a eliminação de dificuldades tecnológicas relacionadas com a precisão das medições e da garantia que a resultante das forças é realmente nula, a demonstração de tal afirmação iria requerer a determinação da posição do centro de massa numa infinidade de pontos, o que levaria uma quantidade infinita de tempo a analisar. Note-se que o argumento não invalida o facto de que se pode mostrar experimentalmente de que o centro de massa do móvel cruze um número finito de pontos nos intervalos de tempo previstos mas a lei física da inércia, quando considerada sobre a hipótese do movimento contínuo, não deixa de estar no domínio metafísico. Daí, ter sido uma lei que, até ter sido estabelecida na sua forma final, tenha sido debatida por muitos indivíduos ao longo do tempo e não, o resultado do intelecto daquele que se considera ter estabelecido a sua forma actual. Como se pode constatar, trata-se de uma lei que pode ainda ser submetida a críticas.

A proposta ontológica

Designa-se aqui por matéria à totalidade do que existe. O conceito de matéria não se cinge apenas ao que se considera ser o mundo físico, isto é, ao concreto, mas também às concepções mentais que constituem o que é abstracto. A afirmação de existência é considerada aqui um facto não analisável, não se podendo reduzir a conceitos mais simples. Porém, os conceitos de concreto e abstracto carecem de um estudo mais detalhado, devendo ser analisados.
Uma forma de dar consistência aos conceitos intuitivos de concreto e abstracto consiste na consideração de que se tratam de manifestações da matéria. Assume-se, portanto, que a matéria se manifesta no estado concreto ou no estado abstracto. Da natureza considerada para os estados de concreto e abstracto, é possível considerar que se tratam de estados complexos, podendo ser redutíveis a composições de estados mais simples. A decomposição ou análise de cada estado deverá terminar quando se atingirem estados que se poderão considerar não analisáveis, isto é, que não possam ser decompostos em estados ainda mais simples. Trata-se de uma tarefa epistemológica, já que compete à ciência determinar quais são os estados mais simples, no caso da decomposição do estado concreto e às várias disciplinas humanas, no caso da decomposição do abstracto. Aos estados não analisáveis atribui-se a designação de estados primários ou primestados. Nesta perspectiva, se se subtrair a matéria, restam os primestados, constituindo estes a única classe ontológica.
É pertinente tecer alguns comentários sobre esta proposta e aquilo que se percebe das experiências do senso comum. A afirmação de que uma matéria única que se manifesta em vários estados, quando podemos observar e palpar objectos continuamente distintos parece conduzir a uma contradição. No entanto, uma análise profunda permite justificar tal consideração. De facto, não há outra razão, para além da continuidade, para que dois cubos indiscerníveis mas separados de uma distância perceptível seja encarado como duas matérias distintas e um paralelepípedo contínuo, homogéneo cuja forma seja a união geométrica de dois cubos seja apenas uma. Tratando-se de uma matéria apenas e de um estado de continuidade ou descontinuidade, permite facilitar a análise.
Um exemplo interessante do conceito encontra-se na biologia celular. A célula consiste na unidade estrutural e funcional mais básica em todos os organismos vivos que se conhece. Trata-se de uma estrutura contínua composta por um citoplasma encerrado por uma membrana. A célula divide-se em duas células diplóides ou quatro células haplóides, cada uma, consistindo num citoplasma envolto por uma membrana. Pode-se, porém, considerar que a célula é a mesma após a divisão, considerando agora que se encontra num estado de não continuidade. Cada uma das células descendentes é, portanto, parte do todo que é a célula original. Segundo esta ideia, a diversidade da vida que daí adveio, consiste nas células originais que, após determinada evolução, se manifestam sobre numa miríade de estados.

A noção de tempo e espaço

Considere-se uma partícula que parte do ponto \(A_0\), com velocidade horizontal e chega ao ponto \(A_1\), passando por todos os pontos intermédios. A sentença anterior permite descrever uma percepção da realidade do senso comum, dado que os objectos do quotidiano podem ser deslocados de um sítio para outro. Assumindo tratar-se de um estado complexo, este pode ser dividido num conjunto de estados, cada um, caracterizado por se encontrar no ponto \(A_t\), onde \(t\in\left\lbrack 0,1\right\rbrack\) é uma etiqueta. Dado que os estados se nos apresentam segundo uma determinada ordem, é induzida uma ordem no conjunto de estados que descrevem o estado complexo. Num referencial cujo eixo horizontal contém a posição da partícula relativamente ao ponto \(A_0\) e o eixo vertical define o valor do parâmetro \(t\), o estado anterior pode ser representado por uma linha contínua definida entre os pontos \((A_0,0)\) e \(\left(A_1,1\right)\). O parâmetro \(t\) surge, portanto, da necessidade de explicar a dinâmica aparente da realidade imediatamente perceptível.
Do ponto de vista observacional, o estado complexo surge-nos como a sequêncida de estados caracterizados pela partícula se encontrar nos pontos \(A_t\) e, caso a observação seja interrompida no estado em que a partícula se encontra no ponto \(A_\tau\), não se consegue uma descrição observacional do estado completo, apesar de ser possível inferi-lo, com base em regras do senso comum ou científicas. Tal determinação é conseguida com algum grau de certeza. Neste caso, qualquer estado complexo cuja observação envolva uma determinada dinâmica, só poderá ser construído quando todos os estados que o compõem são ordenadamente observados. É isto que parece acontecer, pelo menos ao nível do que se pode perceber a partir dos dados sensoriais.
Aos estados da matéria que vêm antes, relativamente à ordenação observacional, dizem-se causas dos estados subsequentes quando estes resultam da decomposição de um estado complexo em estados que o compõem e são observados. Por exemplo, a observação de que duas partículas, partindo de dois pontos distintos \(A\) e \(B\), se encontram no mesmo ponto \(C\) ao longo de trajectórias rectilíneas e são reconduzidas, após colisão, respectivamente, aos pontos \(E\) e \(F\), este pode ser decomposto no estado em que as partículas \(A\) e \(B\) percorrem as suas linhas rectas até \(C\) e o estado em que as partículas percorrem as linhas rectas \(CE\) e \(CF\). A ordenação terá de ser assim apresentada uma vez que não se observa o primeiro antes do segundo. Diz-se que o primeiro estado é causa e o segundo é efeito.
O parâmetro \(t\) que aqui tem um carácter abstracto pode ser escolhido de forma arbitrária para indexar os vários estados constituintes de um estado complexo. É claro que deverá tomar valores num conjunto onde se possa definir uma ordem de modo a explicitar o carácter observacional. Postula, portanto, uma estrutura de tempo nos estados da matéria, do mesmo modo que estados de descontinuidade permitem indexar objectos conduz ao postulado para a estrutura de espaço. Neste último caso, não se destaca uma ordenação natural como no anterior, apesar de uma ordenação parcial ser útil para a sua descrição.

A mente e os sentidos

As concepções que temos do mundo e de como falamos sobre ele parecem centrar-se nos resultados da neurociência. Dados empíricos permitem concluir que, por exemplo, a luz que é reflectida por um objecto e chega aos olhos dá origem à activação de determinados circuitos cerebrais em várias zonas do cérebro. Os dados sensoriais oriundos da retina são processados de modo a possibilitar o reconhecimento dos objectos, nomeadamente, as características que permitam classificá-lo. Determinadas doenças como a agnosia resultam de danos nesses centros de processamento, o que limita ou até mesmo impede o reconhecimento de pessoas, objectos, formas e sons. Outras doenças, como a esquizofrenia, causam alucinações auditivas, visuais ou tácteis de tal forma que seja impossível distinguir o que é real do que é imaginário. Não é descabido especular que circuitos neuronais que estejam envolvidos directa ou indirectamente no processo de reconhecimento de objectos e respectiva classificação possam ser activados de forma não conforme aos dados visuais. Estes factos, por si sós, são suficientes para justificar que mesmo uma pessoa considerada saudável poderá não ser capaz de tomar conhecimento da verdadeira natureza de um determinado objecto, mesmo que aproximada, mas apenas da sua representação que resulta da activação de determinados circuitos neuronais.
Dois outros argumentos jogam a favor da natureza abstracta das propriedades. A cor talvez seja o exemplo que permite ilustrar o problema da propriedade na sua forma mais geral. Em primeiro lugar, é indiscutível a sensação de cor que se tem aquando da observação dos objectos. Do ponto de vista físico, é a frequência da onda que está associada aos fotões que são emitidos ou reflectidos pelo objecto que dão origem à sensação. As frequências das ondas associadas a fotões que estimulam a visão humana assumem valores num pequeno intervalo do espectro electromagnético. Dado que, à radiação que emana dos objectos, não lhe está associada uma frequência única, as cores percebidas resultam da combinação das cores associadas à composição de cada uma das frequências. Sabe-se também que os órgãos de visão de outros animais são estimulados por radiação electromagnética cuja frequência se encontra fora do espectro visível, isto é, é possível conceber cores que não são percebidas pelos humanos. Doenças como a acromatopsia ou a discromatopsia resultam na impossibilidade de identificar ou discernir as cores. Neste caso, a concepção de cor para pessoas que padecem desse problema desde a nascença, encontra-se no mesmo limite de concepção que um individuo normal possa fazer de cores que não são percebidas mas que podem ser conceptualizadas, considerando radiação com frequências fora do espectro visível.
Em segundo lugar, não parece ser possível determinar se a sensação daquilo que se considera a mesma cor ser a mesma para duas pessoas diferentes, dado que a sua designação resulta de um processo de convenção. De modo a ilustrar a ideia, considerem-se duas pessoas \(A\) e \(B\) cada uma das quais é capaz de discernir entre três cores, o vermelho, o verde e o azul. Considere-se um observador \(O\) que consegue sondar as mentes das pessoas \(A\) e \(B\), bem como ter a percepção correcta da verdadeira natureza das cores e que estas de facto existem na realidade como \(O\) as percebe. Suponha-se que o observador \(O\) inspeciona a mente da pessoa \(A\) e conclui que aquilo que ela designa por azul é, na realidade, vermelho. Verifica, do mesmo modo, que o vermelho corresponde à sensação de verde e o verde corresponde à sensação de azul. Note-se que, sendo as sensações de \(O\) as reais, a pessoa \(A\) possui a sensação errada das cores. A pessoa \(A\) recorre a três objectos para ensinar as cores à pessoa \(B\). Quando a pessoa \(A\) escolhe o objecto que possui a cor azul, está, de acordo com \(O\) a escolher o objecto vermelho. No entanto, \(O\) sonda a mente de \(B\) e verifica que a sensação que esta tem do objecto é a de verde. Como \(A\) convencionou tratar-se de azul, a sensação de verde da pessoa \(B\) corresponde à sensação de vermelho da pessoa \(A\) mas ambos irão designá-la por azul. De entre um conjunto de objectos se se pedir a cada uma das pessoas \(A\) e \(B\) que retirem o objecto azul, a pessoa \(A\) irá retirar o objecto com a cor cuja percepção pessoal é a de vermelho e que corresponde ao azul de \(O\). Por seu turno, o objecto que corresponde ao azul de \(O\) é visto como verde pela pessoa \(B\), sendo à sensação de verde que associa o termo azul. Neste caso, a pessoa \(B\) escolherá o objecto cuja sensação seja a de verde mas que esta designa por azul e, portanto, irá retornar o objecto que é azul para \(O\) que coincide com o objecto que \(A\) escolheu.
Como \(O\) não intervém no processo, pode ser subtraído, sendo possível o cenário em que duas ou mais pessoas atribuam a mesma terminologia a cores diferentes, concordando sempre com o objecto escolhido quando este é seleccionado através da cor. É claro que se a pessoa \(B\) não for capaz de distinguir as três cores, objectos diferentes na cor mas semelhantes em tudo o resto não poderão ser discernidos por \(B\) a menos das suas posições relativas. Poder-se-ia postular aqui que as propriedades são concretas e todas as pessoas que distinguem as cores têm a mesma sensibilidade do observador \(O\) que é a sensibilidade real. No entanto, a teoria ontológica acima apresentada e a teoria da linguagem que será esboçada sobre essa ontologia não requerem este último postulado.

Teoria da verdade

A discussão do modo que se fala do mundo requer uma análise detalhada daquilo que se tem como verdadeiro ou falso e as suas consequências mentais. De facto, entre os tipos de sentenças que se podem criar, são as declarativas, isto é, aquelas que podem ser afirmadas ou negadas, que permitem descrever ou transmitir ideias sobre o mundo. Uma sentença declarativa proferida pelo emissor \(E\) e percebida pelo receptor \(R\) permite a comunicação de conhecimento entre ambas as mentes. As sentenças são sempre proferidas, partindo do princípio que o seu valor lógico é verdadeiro. Assim, quando o emissor \(E\) profere a frase "o objecto \(O\) tem a propriedade \(P\)", é estabelecida a convenção de que o que diz é o que pretende transmitir como sendo verdade. Trata-se de uma convenção, já que se a sentença fosse convencionada como falsa, seria verdadeira a sua negação e, portanto, a sentença "o objecto \(O\) não tem a propriedade \(P\)". A convenção de que o que se pretende transmitir deve ser considerado como verdade adquire um carácter mais simples e natural.
Poder-se-ão verificar diferentes cenários quando o emissor \(E\) profere a frase. A frase poderá ou não estar de acordo com a crença do emissor ou com alguma concepção a que ele tenha acesso no seu mundo mental particular. No caso de não se dar o acordo entre a veracidade da frase e a sua crença ou com a concepção que refere, diz-se que o emissor está a mentir. Por seu turno, se a frase se refere à crença, isto é, à representação mental que tem do mundo concreto, o seu valor lógico, para além da dependência na boa-fé do interlocutor, depende ainda da fidedignidade da sua crença relativamente ao mundo concreto. O receptor \(R\), percebe a frase na sua forma positiva, assumindo que é verdadeira quando está de acordo com a crença ou concepção mental do emissor e atribui-lhe um valor lógico verdadeiro caso esta se adeque à sua crença ou considere a afirmação plausível o suficiente para fazer os ajustes necessários no seu sistema de crenças de modo a considerá-la como verdadeira. Existem sentenças que descrevem estados mentais verdadeiros por convenção. Por exemplo, a afirmação "conjuntos não vazios de objectos contêm objectos" é sempre verdadeira mediante a convenção do que deve ser entendido por conjunto, independente da existência de facto de qualquer conjunto e depende inteiramente da linguagem. Uma afirmação do tipo "qualquer objecto, quando largado perto da superfície da Terra, cai" é verdadeira, na medida em que descreve com precisão uma situação do mundo concreto, isto é, um estado complexo. Importa aqui decidir o valor lógico de sentenças que se refiram a modelos mentais do mundo concreto, desconsiderando as redundâncias introduzidas por verdades oriundas de convenções e assumindo a honestidade dos intervenientes na sua determinação. O problema reduz-se essencialmente ao estabelecimento da veracidade de uma crença. Afiguram-se algumas dificuldades no estabelecimento daquilo que se entende por verdade.
Duas pessoas, \(A\) e \(B\), observam um mesmo objecto. A pessoa \(A\) diz tratar-se de um lápis branco e a pessoa \(B\) diz tratar-se de um livro preto, sendo ambas honestas nas suas afirmações e não estando equivocadas no que concerne ao que se deve entender por lápis branco ou livro preto. Trata-se de um situação plausível num cenário de alucinação onde ambas as pessoas se referem apenas a projecções mentais sem se aperceberem que não dependem dos dados sensoriais. Pode-se afirmar que a observação de um lápis branco é verdade no mundo mental de \(A\) e a observação de um livro preto é verdade no mundo mental de \(B\). Uma forma que cada uma delas tem para comprovar as suas concepções seria manusear cada um dos objectos. Tratando-se de alucinações visuais, tanto a pessoa \(A\) como a pessoa \(B\) não teriam percepção táctil dos objectos. Porém, pelo menos duas conclusões poderiam daqui advir. A primeira, consistiria na alteração do sistema de crenças onde se assume agora estar na presença de uma alucinação visual. Na segunda, seria mantida a crença original de que o objecto existe mas fora do plano táctil dos objectos que podem ser materialmente manuseados. Supondo que a pessoa \(A\) altera o seu sistema de crenças, considerando tratar-se de uma alucinação e a pessoa \(B\) a mantém, considerando que o objecto que vê se encontra num plano alternativo ao táctil. O ponto de convergência aqui consiste em observar que ambos os observadores concordam que o livro não existe no mundo com causalidade táctil, sendo esta a verdade em que ambos concordam e que porta utilidade prática. De facto, não sendo possível manuseá-los, não podem usar o lápis para escrever no livro. Define-se então a verdade concreta como resultado das verdades percebidas por todas as pessoas envolvidas com dependência causal. Por seu turno, a intersecção dos mundos particulares das pessoas \(A\) e \(B\) só pode ser estabelecido por intermédio de uma linguagem e é a intersecção máxima que melhor permite verificar a veracidade das concepções. A dificuldade encontra-se, deste modo, na determinação da intersecção máxima dos mundos abstractos, recorrendo à utilização da linguagem e todas as limitações que lhe estejam associadas.
Outra dificuldade no estabelecimento da verdade advém do facto das mentes individuais terem apenas acesso causal a um conjunto limitado de estados da matéria pelos sentidos e conseguir percebê-los na ordem determinada pela linha do tempo. Assim, quando se diz que qualquer objecto denso, quando largado à superfície da Terra cai, assume-se como verdade, já que a intersecção honesta dos mundos das pessoas que reportaram isso até agora permite concluir a sua veracidade. Além disso, concorda-se que se trata de uma afirmação que pode ser facilmente constatada pelos sentidos, sendo, portanto, uma descrição de um mundo concreto. Por seu turno, no passado, a verdade admitiria um enunciado mais forte, consistindo na afirmação de que qualquer objecto denso cai. Este pressuposto cessa de ser uma verdade desde que foi possível mostrar que tal objecto pode não cair se se encontrar de tal maneira longe da superfície da Terra que a acção gravítica seja insignificante. Deste modo, afirmações que têm sido verdades do mundo concreto ao longo do tempo dizem-se ser portadoras de verdade potencial que é normalmente alterada, introduzindo condições adicionais. A expressão "todo o homem é mortal", por exemplo, contém, em si, uma verdade potencial, dado que no futuro poderão deixar de existir homens ou alguns destes passem a ser imortais. Uma verdade potencial que pode ser potencialmente verdadeira no futuro seria "todos os homens de uma linhagem que nunca foi submetida a altereações genéticas é mortal". A dificuldade de admitir que uma verdade potencial concreta constitui a verdade concreta no sentido metafísico encontra-se no pressuposto de que a totalidade poderá não ser a soma das partes. Se só é possível observar a parte, como objectivar o todo?

A matemática e as leis naturais

Seja \(A\) uma região delimitada por uma linha fechada no chão. Suponha-se que na região se encontra uma conjunto de laranjas. O seguinte procedimento permite contá-las. Pega-se numa laranja da região \(A\), atribui-se-lhe a etiqueta \(1\) e move-se para a região \(B\). Se ainda existirem laranjas na região \(A\), pega-se numa delas, move-se para a região \(B\) e atribui-se-lhe a etiqueta \(2\). Aplique-se o mesmo processo até que a região \(A\) não possua laranjas, movendo-se a última delas para \(B\) e aplicando-lhe a  etiqueta \(n\). O procedimento assim definido permite determinar o cardinal \(n\) para aquilo que se entende por quantidade das laranjas contidas na região \(A\). Aplicando agora o mesmo procedimento, movendo e etiquetando as laranjas da região \(A\) para a região \(B\) permite concluir que a última etiqueta colocada será a que corresponde à quantidade \(n\). Note-se que está a ser aqui explicitado um procedimento que poderá ser submetido a uma experiência causal.
Coloque-se agora um conjunto de laranjas na região \(A\) e aplique-se o procedimento, parando quando se chega à etiqueta \(2\). Se não for possível escolher laranjas da região \(A\) antes de se marcar com a etiqueta \(2\), outras laranjas deverão ser colocadas na região \(A\) e continuar o procedimento. Do mesmo modo, traça-se a região \(C\) e movem-se as laranjas da região \(A\) até se chegar à etiqueta \(2\), removendo as restantes da região \(A\) e as etiquetas das laranjas contidas nas regiões \(B\) e \(C\). Se se aplicar o procedimento de contagem acima descrito às regiões \(B\) e \(C\) obtém-se a quantidade de \(2\) laranjas, tanto na região \(B\) como na região \(C\).
Movam-se as laranjas da região \(B\) para a região \(A\). Do mesmo modo, movam-se as laranjas da região \(C\) para a região \(A\).Aplique-se o procedimento de contagem acima descrito, movendo-as e etiquetando-as, por exemplo, na região \(B\).
O mesmo procedimento pode ser aplicado agora a um conjunto de maçãs. Considera-se um conjunto de maçãs na região \(A\) que são movidas para a região \(B\) e etiquetadas até que a última etiqueta seja \(2\). Se se exaurirem as maçãs antes da etiqueta obtida, terão de ser acrescentadas maçãs à região \(A\). Movem-se maçãs da região \(A\) para a região \(C\), parando quando for atribuída a etiqueta \(2\) à última maçã a ser movida, acrescentado maçãs à região \(A\) sempre que estas forem exauridas antes da atribuição da etiqueta pretendida. Removam-se as maçãs da região \(A\) e as etiquetas das maçãs nas regiões \(B\) e \(C\). Movam-se as maçãs da região \(B\) para a região \(A\) e, de seguida, movam-se as maçãs da região \(C\) para a região \(A\). Aplique-se o processo de contagem, movendo-as, por exemplo, para a região \(B\) e etiquetando-as convenientemente.
A realização da experiência tanto com maçãs como com laranjas conduz a uma contagem de \(4\) em ambos os casos, isto é, a última maçã ou laranja a ser movida da região \(A\) para a região \(B\) no processo final da contagem irá receber a mesma etiqueta \(4\). O que acontecerá se se aplicar o mesmo procedimento, ao invés de se usarem maçãs ou laranjas, se usarem objectos sólidos de outra natureza? É conhecimento do âmbito do senso comum que, partindo de \(2\) objectos na região \(B\) e de \(2\) objectos na região \(C\), transportados a partir da região \(A\), quando levados de volta a essa região, movidos para \(B\) enquanto são etiquetados, se obterá a etiqueta \(4\). Dado que o procedimento não depende da natureza dos objectos sólidos, estes poderão ser subtraídos, ficando apenas \(2+2=4\). Trata-se de uma expressão que, aliada a um procedimento experimental bem definido, constitui uma verdade potencial, isto é, a uma representação em linguagem da melhor intersecção concreta dos mundos mentais da qual nunca se registou um testemunho causal contrário, pelo menos, no que concerne aos objectos habituais.
Ora, é bem verdade que não é possível aplicar o procedimento anterior a um conjunto de electrões ou outras partículas, tais como fotões. Porém, é possível definir outros procedimentos sobre electrões ou fotões, tais como a experiência da gota de óleo ou a medição da energia de um feixe de fotões sob o pressuposto quântico, que, aliados à representação \(2+2=4\), permitem estender a verdade potencial anterior a esses casos.
Considere-se o seguinte procedimento. Delimite-se uma região numa zona plana do chão e coloque-se lá um objecto. Eleve-se o objecto ao longo da vertical até uma altura arbitrária mas pequena. Largue-se o objecto, garantindo que nada se interpõe na vertical. Não é necessário realizar esta pequena experiência para saber de antemão que o objecto irá retornar ao chão, numa vizinhança muito próxima de onde foi elevado. A certeza na verdade concreta de que o objecto irá voltar ao chão após ter sido elevado na vertical advém da verdade potencial "qualquer objecto largado à superfície da Terra cai" quando é aliada ao procedimento especificado. Pode-se tentar averiguar se algum estado da matéria é responsável pela queda do objecto. Uma hipótese será de que a Terra exerce uma força sobre o objecto que é tanto maior quanto maior for a massa do objecto. Se se considerar apenas os movimentos dos objectos que são largados à superfície da Terra, tal justificação é desnecessária já que pode ser subtraída ao procedimento. Porém, quando considerada juntamente com outras leis da física e estendida à Lua e ao Sol, mostra-se tratar-se de uma verdade potencial. Teoriza-se, neste caso, que a Terra exerce uma força sobre a Lua e sobre o Sol igual à força que estes exercem sobre a Terra. Essa força é proporcional às suas massas e inversamente proporcional ao quadrado das suas distâncias e está na origem dos movimentos aparentes dos astros. Trata-se da verdade potencial proporcionada pela teoria da gravitação clássica que se tem reduzido a uma verdade concreta por intermédio dos procedimentos da observação da posição do Sol, da Lua e dos restantes planetas qualquer que seja o instante considerado. Tal lei é verdade potencial em todos os casos com excepção de objectos que se encontrem muito perto do Sol. Nestes casos, será necessário recorrer à teoria geral da relatividade que permite prever a posição dos astros, determinada com base em procedimentos de observação bem definidos, não importa a sua proximidade ao Sol. É claro que os procedimentos de observação concordam com ambas as teorias para objectos afastados do Sol, não importando em termos práticos, nestas condições, qual é a lei que se aceita como a que proporciona a verdade potencial concreta.
Na teoria da relatividade geral, a gravidade pode ser descrita como sendo a distorção da geometria do espaço-tempo na presença de matéria. A explicação clássica, postulava a existência de uma substância, designada por éter, que permearia todo o espaço. Dado que ambas as hipóteses conduzem à mesma verdade potencial no mesmo domínio, conduzindo ambas à mesma formulação matemática, só seria possível discernir entre elas, definindo algum procedimento que permitisse descartar uma delas ou ambas. Porém, assumindo que qualquer um dos conceitos não possui causalidade concreta, a sua veracidade poderá ser apenas determinada no domínio metafísico.

A linguagem como meio de descrição dos mundos particulares

De acordo com a ontologia aqui apresentada, existe matéria e esta manifesta-se em estados, os quais podem ser decompostos em outros estados. Muitos dos estados da matéria envolvem a excitação dos sentidos e activação de vários circuítos neuronais. São essas activações que encerram em si a interpretação dos estados mais simples com os quais compartilham o mesmo estado complexo. Por exemplo, a luz que é emitida por um objecto excita os olhos que, por sua vez, activam circuitos neuronais nas mais diversas zonas do cérebro. Essas activações neuronais portam a representação criada do objecto sobre as quais incidem os termos da linguagem. Note-se que não é aqui assumido que todos os fenómenos mentais são redutíveis à activação de determinados circuitos neuronais. Porém, a percepção do mundo externo disso depende.
Um argumento metafísico em prol desta ideia consiste na utilização da mesma palavra para caracterizar um objecto e a sua representação numa linguagem visual. Por exemplo, designa-se vulgamente por flor, não só uma flor que se possa ver, tocar e cheirar, mas também um desenho de uma flor ou outra representação da flor. Por seu turno, não é a forma apenas que determina um sujeito mas também a sua temporalidade. Um determinado objecto pode ser identificado com um item sem conter a sua forma nesse momento, desde que tenha tido a sua forma antes ou possa vir a ter a sua forma depois. Além da forma e da temporalidade, também determina o sujeito, a sua utilidade. Um determinado objecto pode ser identificado como um item se aportar a mesma usabilidade. Uma mesa ou uma cadeira partidas não deixa de ser uma mesa ou uma cadeira. Não que sejam mesa ou cadeira no tempo presente, mas porque o foram no passado. Antes de ser mesa ou cadeira, eram madeira. É facto que, sendo a madeira destinada a uma mesa ou uma cadeira, essa madeira passa a ser considerada como mesa ou cadeira. Uma rocha com um topo largo pode ser entendida como uma mesa caso a sua utilidade possa ser convertida na de uma mesa, isto é, na de poder sustentar objectos a uma altura conveniente a serem manuseados. É claro que, se a rocha contiver uma saliência que possa servir de encosto, pode ser entendida como sendo uma cadeira, caso a sua utilidade a converta num assento. Uma cadeira pode ser vista como uma mesa quando é usada para esse fim. Aquilo que, para alguém, constitui um banco grande porque percebe ter todas as propriedades que caracterizam um objecto desse tipo, para outro, este poderá ser uma mesa pequena já que muitas das propriedades que caracterizam um banco, tais como a existência de uma superfície plana sustentada por um suporte de algum tipo, também caracterizam uma mesa. De um conjunto de indivíduos numa sala onde o objecto se encontra, um subconjunto poderá convencionar tratar-se de um banco e outro, tratar-se de uma mesa. Uma questão poderá surgir deste cenário. Supondo que de todos os indivíduos, apenas um assume tratar-se de uma mesa, será tratar-se de um banco a melhor descrição da realidade porque todos os outros assim o convencionam? A resposta mais simples parece ser aquela em que se assume que a linguagem incide sobre representações da realidade, isto é, sobre construções mentais. De acordo com esta ideia, todos estão correctos no âmbito da linguagem, estando o problema na convenção. Há muitos exemplos onde a descrição da realidade é muito influenciada pela convenção. Isso acontece quando, por exemplo, se pretende distinguir entre um ser vivo e um ser não-vivo, entre ser doença ou condição, etc.
Dá-se ainda a questão da verdade lógica expressa pelas sentenças proferidas de acordo com alguma teoria da verdade que tem forte dependência na psicologia dos processos mentais. Quando se diz "a casa tem uma cor clara", tal proposição pode ou não ser interpretada pelo receptor como sendo falsa. É interpretada como verdadeira se acreditar que a casa em questão tiver cor clara. Contudo, se acreditar que a sua cor é escura, está-se na presença de um resultado falso. Se estiver convencido que a casa não existe, apesar de continuar a ser possível referi-la, cessa de ser possível determinar a veracidade lógica da sentença onde ela se inclui. Do ponto de vista da comunicação, dizer que uma casa que não existe tem cor clara deverá considerada como sendo falsa de modo a que o receptor não altere o seu sistema de crenças para acomodá-la. Assim, antes de atribuir um valor lógico, é útil parafraseá-la como "existe um objecto que pode ser referenciado pelo termo casa e a sua cor é clara".
Um segundo problema surge quando se consideram propriedades que não são aplicáveis ao termo em questão. Note-se que, para expressar um facto, tem de ser verdadeira a frase "as pernas do rio são grandes" que, reduzida, fica ainda "o rio tem pernas grandes" ou, parafraseando, "o rio é perna-grande". Porém, a propriedade "perna-grande" aplica-se a um animal, mesa ou cadeira mas não é aplicável a um rio e a sentença deverá ser considerada como falsa de modo a não alterar o sistema de crenças do receptor.

Uma abordagem possível em lógica de predicados

Considere-se a frase "o objecto \(O\) tem a propriedade \(P\)". De modo a ser possível avaliar a sua veracidade, esta frase deverá ser parafraseada como "existe uma e uma só representação mental x que se caracteriza por ser \(O\), a caracterização de \(O\) admite \(P\) como propriedade e \(O\) possui a propriedade \(P\)". Note-se que o mapeamento entre a representação mental \(x\) e um objecto concreto, isto é, um conjunto de estados complexo, pode não se verificar para o receptor considerá-la como verdadeira. Pode, portanto, significar um conceito abstracto. Além disso, é habitual a utilização de linguagem corporal na identificação dos objectos concretos que pertencem ao domínio dos discursos, como apontar ou pegar, bem como a referência a objectos que estão fora do domínio dos sentidos, sendo tomados como verdadeiros com base na fé que o receptor tem sobre as afirmações do receptor. Por exemplo, o emissor pode apontar um objecto que esteja no campo de visão do receptor e afirmar "isto é uma árvore" ou dizer "plantei uma árvore no meu quintal". No primeiro caso, o receptor poderá avaliar a veracidade do que o emissor afirma com base na sua percepção visual. No segundo, avaliará como verdadeira ou falsa mediante a fé que tenha na afirmação do emissor. Finalmente, se, a partir do contexto, duas referências estiverem envolvidas, não será possível atribuir-lhe um valor de verdade. A solução do problema é comportamental, dado que o receptor pode emitir uma pergunta de modo a caracterizar unicamente uma referência ou pode escolher ao acaso uma delas. Por exemplo, quando o emissor, enquanto aponta na direcção de duas casas e diz "aquela casa tem serviços públicos", o receptor, não existindo uma razão imediata que o leve a determinar a qual das duas casas se refere o emissor, pedir-lhe-á que reveja o seu método de referência.
Uma proposta para a frase "o objecto \(O\) tem a propriedade \(P\)" pode ser condensada na expressão lógica de predicados
\[\exists!x F(O,P)(x)\]
Aqui considera-se \(F(O,P)(x)\) como notação para \(F\left(O(x),P(x)\right)\). Frases declarativas são, de acordo com esta proposta, dadas por funcionais que actuam sobre funções lógicas. No exemplo acima tem-se \(F(O,P)=O\land P\). A função \(O\) deverá ser tal que proporciona um valor lógico verdadeiro apenas quando considerada sobre a referência pretendida.
De modo a tornar claro como funciona este princípio, considere-se a frase "esta frase é falsa" que está na base de um conhecido paradoxo do mentiroso. A frase é parafraseada como "existe uma e uma só representação mental \(x\) tal que \(x\) é caracterizado por ser uma frase \(S\), \(S\) admite a caracterização de possuir a propriedade \(F\) de ser falsa e \(S\) possui a propriedade \(F\) de ser falsa". Suponha-se que, para além de outras propriedades, as frases não gráficas se caracterizam por serem sintacticamente válidas \(SV\) ou inválidas \(SI\), ter valor lógico verdadeiro \(VLV\) ou falso \(VLF\) e não ser possível atribuir-lhes uma cor \(C_i\), que poderá ser incolor \(I\). A propriedade que distingue a frase em questão de outras frases com o mesmo conteúdo será denotada por \(R(x)\) e corresponde ao "esta" da sentença. Do ponto de vista lógico, ter-se-á 
\[S=...\land SV\land VLV\land \neg\left(C_1\lor C_2\lor C_3\lor ...\right)\land R\]
A frase escreve-se, em lógica de predicados, como
\[\exists!x \left(...\land SV\land VLV\land\neg VLF \neg\left(C_1\lor C_2\lor C_3\lor ...\right)\land R\land VLF\right)(x)\]
Note-se que, por convenção, a frase \(S\) caracteriza-se por ter valor lógico verdadeiro e não ter valor lógico falso. A expressão é falsa, dado que \(\forall x \neg VLF(x)\land VLF(x)\) é falso, sendo o resultado da conjunção de uma expressão arbitrária com uma expressão falsa. O paradoxo cessa de existir ao nível da linguagem já que assumir que a frase é falsa entra em conflito com a convenção de que as frases são proferidas no sentido de serem veradeiras. Sendo falsa, por seu turno, não descreve uma situação do mundo, apesar de nada impedir de afirmar que a frase existe concretamente, quanto muito, na sua forma fonológica.
Foi assumido que a frase atrás considerada não tem cor, o que é verosímel em frases que não possuem representação gráfica. A sentença "esta frase é incolor" deverá ser falsa, na medida em que a propriedade incolor \(I\) não caracteriza a frase. Em lógica de predicados tem-se
\[\exists!x \left(...\land SV\land \neg\left(I\lor C_1\lor C_2\lor C_3\lor ...\right)\land R\land I\right)(x)\]
Ora, como \(\forall x \left(\neg\left(I\lor C_1\lor C_2\lor C_3\lor ...\right) \land I\right)(x)\) é falso, facilmente se constanta que a sentença "esta frase é incolor" é falsa. Por seu turno, a sentença "esta frase é verdadeira" admite a representação lógica
\[\exists!x \left(...\land SV\land VLV\land\neg VLF \neg\left(C_1\lor C_2\lor C_3\lor ...\right)\land R\land VLV\right)(x)\]
que se reduz a
\[\exists!x \left(...\land SV\land VLV\land\neg VLF \neg\left(C_1\lor C_2\lor C_3\lor ...\right)\land R\right)(x)\]
Neste caso, a afirmação está de acordo com a concepção lógica da frase, não incorrendo numa falsidade independente da referência. A sua veracidade será proporcionada pelo seu ajuste à realidade, quer por intermédio dos sentidos, quer por intermédio da crença.
Apresentada a ideia fundamental, resta determinar a forma das funções lógicas que mais se adequam à caracterização dos sujeitos. Para o efeito, suponham-se que as propriedades conhecidas são da forma \(P_1,P_2,P_3,\cdots,P_n\), tendo em mente que \(n\) propriedades podem caracterizar apenas \(2^n\) objectos diferentes. Qualquer funcional lógico finito das propriedades, dado por expressões do tipo "isto é o objecto \(O\)", caracteriza-se por
\[\exists!x P_1\land P_2\land P_3\land\neg P_4\land\neg P_5\land\cdots\]
Os \(2^n\) objectos distintos possíveis que se podem caracterizar com o conjunto de propriedades contam-se, considerando as combinações dos sinais de negação que podem ser aplicados a cada uma das propriedades.
Antes e proceder à caracterização é útil relembrar que \(VLV\) não é equivalente a \(\neg VLF\) para toda a representação mental \(x\). Nada impede de conceber um tipo de frase que se pode considerar verdadeira e falsa ao mesmo tempo e, neste tipo de frases, se ter como verdadeira a expressão
\[\exists!x \left(\cdots\land VLV\land VLF\right)(x)\]
As sentenças não se referem apenas a conceitos de objectos únicos mas também de múltiplos objectos. A frase "há objectos do tipo \(O\)" pode ser escrita, em lógica de predicados na forma canónica de conjunção de disjunções, como
\[\exists x \left(\left(\neg P_1\lor P_2\lor\neg P_3\right)\land\left(P_1\lor\neg P_4\lor P_5\right)\land\cdots\right)\]
Apesar de qualquer expressão deste tipo poder ser aplicável à caracterização de objectos do tipo \(O\), tal caracterização deverá ser simples o suficiente para que a sua veracidade seja rapidamente verificável e esteja sujeita ao menor erro de avaliação possível. Agrupam-se, portanto, determinadas propriedades das quais apenas uma pode ocorrer, como por exemplo, as propriedades exclusivas de uma frase "sintacticamente válida" e "sintacticamente inválida", propriedades que podem ocorrer em simultâneo, tais como as cores de um objecto multicolorido, propriedades que nunca podem ocorrer como é o caso de todas as cores nas frases sonoras e, em alguns casos, algumas implicações formais. Um exemplo de implicação formal é descrito por \(SI\to VLF\), isto é, uma frase sintacticamente inválida deverá ter um valor lógico falso.
Sejam \(E_{ij}\) propriedades exclusivas, \(P_{ij}\) as propriedades que podem ocorrer em simultâneo, \(Q_{ij}\) as propriedades que nunca podem ocorrer e \(C_i\) expressões de propriedades que ocorrem condicionalmente. Uma expressão lógica que admite um aspecto geral para a caracterização do universal \(O\) em "há objectos do tipo \(O\)" escreve-se na forma
\[\begin{array}{l}\exists x \left(\left(E_{11}\oplus E_{12}\oplus\cdots\right)\land\left(E_{21}\oplus E_{22}\oplus\cdots\right)\land\cdots\land\\ \land\left(P_{11}\lor P_{12}\lor\cdots\right)\land\left(P_{21}\lor P_{22}\lor\cdots\right)\land\\ \land \neg\left(Q_{11}\lor Q_{12}\lor\cdots\right)\land\neg\left(Q_{21}\lor Q_{22}\lor\cdots\right)\land\cdots\land\\ \land\left(\left(P_{11}\land P_{12}\land\cdots\right)\to C_1\land\cdots\right)\right)(x)\end{array}\]
Observe-se que poderão ocorrer propriedades exclusivas que envolvem mais do que duas opções complementares como é o caso de "ser bom" ou "ser mau", não podendo ser os dois simultaneamente. Um dos exemplos mais extensos consiste no comprimento. Muitos comprimentos podem ser possíveis para objectos que se caracterizam por ter comprimento mas, quando o objecto é especificado, o comprimento fica automaticamente determinado, não sendo inteligível atribuir-lhe dois valores distintos.

Um exemplo

Considere-se um conjunto de peças com formas geométricas de triângulos e rectângulos, sendo que os rectângulos possuem largura unitária. No conjunto, existem dois triângulos equiláteros de bases unitárias, um azul e outro, azul e verde, e um triângulo isósceles amarelo de base unitária, sendo o comprimento dos outros dois lados igual a \(2\). Existe um rectângulo amarelo de comprimento \(2\), um rectângulo vermelho de comprimento \(3\) e um quadrado azul e verde cujo comprimento \(1\) é igual ao da largura. Definam-se as propriedades triângulo \(T\), rectângulo \(R\), os comprimentos \(L_1\), \(L_2\) e \(L_3\) e as cores azul \(C_A\), vermelho \(C_V\), verde \(C_D\) e amarelo \(C_M\). Suponha-se que são atribuídas etiquetas de \(1\) até \(6\) na ordem em que são considerados na descrição anterior. Os objectos podem ser identificados pelos seguintes funcionais lógicos

  1. \(T\land L_1\land C_A\land\neg R\land\neg\left(L_2\lor L_3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_D\lor C_M\right)\)
  2. \(T\land L_1\land C_A\land C_D\land\neg R\neg\left(L_2\lor L3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_M\right)\)
  3. \((T\land L_2\land C_M\land\neg R\land\neg\left(L_1\lor L_3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_D\lor C_A\right)\)
  4. \((R\land L_2\land C_M\land\neg T\land\neg\left(L_1\lor L_3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_D\lor C_A\right)\)
  5. \((R\land L_3\land C_V\land\neg T\land\neg\left(L_1\lor L_2\right)\land\neg\left(C_M\lor C_D\lor C_A\right)\)
  6. \((R\land L_1\land C_A\land C_D\land\neg T\land\neg\left(L_2\lor L_3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_M\right)\)

Apenas a forma, o comprimento e as cores são suficientes para determinar inequivocamente cada um dos objectos arrolados. A frase "o objecto \(4\) é um triângulo", parafreseada como "existe uma e uma só representação mental \(x\) que se caracteriza por ser o objecto identificado por \(4\) e ser um triângulo", reduz-se à expressão lógica
\[\exists!x \left((R\land L_2\land C_M\land\neg T\land\neg\left(L_1\lor L_3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_D\lor C_A\right)\right)(x)\land T(x)\]
Porém, como \(\neg T(x)\) entra disjuntivamente na caracterização do objecto \(4\), a expressão é falsa. Por seu turno, a frase "o objecto \(6\) é equilátero" requer uma análise mais profunda dado que "ser equilátero" não é uma das propriedades que foram consideradas primárias na definição dos objectos. No entanto, pode ser caracterizada por um funcional lógico 
\[E=L_1\land\neg\left(L_2\lor L_3\right)\]
A sentença "o objecto \(6\) é equilátero" fica da forma
\[\begin{array}{l}\exists!x \left(R\land L_1\land C_A\land C_D\land\neg T\land\\ \land\neg\left(L_2\lor L_3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_M\right)\land L_1\land\neg\left(L_2\lor L_3\right)\right)(x)\end{array}\]
que se simplifica em
\[\exists!x \left(R\land L_1\land C_A\land C_D\land\neg T\land\neg\left(L_2\lor L_3\right)\land\neg\left(C_V\lor C_M\right)\right(x)\]
a qual é verdadeira já que é satisfeita apenas pelo objecto referenciado por \(6\).
A expressão 
\[I=T\land\left(L_2\oplus L_3\right)\land\neg L_1\land\neg R\]
permite caracterizar a propriedade isósceles que vale apenas para os triângulos. Note-se que se tem que \(I\to\neg (E\lor R)\) é sempre verdade, isto é, um objecto isósceles não pode ser equilátero nem rectângulo. Este último funcional constitui um facto que permite determinar rapidamente que a frase "o objecto \(5\) é isósceles" é falsa, já que se trata de um rectângulo.
É importante caracterizar todos os objectos que pertencem à lista como "todos os objectos são do tipo objecto_da_lista", recorrendo apenas às propriedades que se consideram ser suficientes para identificar todos os objectos. Dos \(2^9\) funcionais lógicos que se podem formar, apenas \(6\) podem assumir um valor verdadeiro. Sejam esses valores \(P_i\), com \(i=1,\cdots, 6\) e \(P_j\), \(j=7,\cdots,2^9\), os que assumem sempre um valor falso. O funcional lógico
\[F=\left(P_1\lor\cdots\lor P_6\right)\land\neg\left(P_7\lor\cdots\lor P_{2^9}\right)\]
estará nessas condições. A substituição dos funcionais \(P_i\) pelas respectivas expressões nas propriedades que se consideraram essenciais permite obter o funcional \(F\) que caracteriza o facto de pertencer à lista. A simplificação da expressão parecer ser complicada. Porém, existe alguma regularidade que poderá, porventura, ser explorada. Em primeiro lugar, as propriedades \(T\) e \(R\) têm de entrar em todas as expressões de forma exclusiva. Isso deve-se ao facto de uma figura não poder ser simultaneamente um triângulo e um rectângulo. O mesmo se passa com os comprimentos, já que um objecto não pode possuir mais do que um valor para o seu comprimento. A expressão lógica
\[\left(T\oplus R\right)\land\left(L_1\oplus L_2\oplus L_3\right)\land\left(C_A\lor C_V\lor C_D\lor C_M\right)\]
assume o valor lógico de verdade em \(2\times 3\times\times 2^4\) combinações de valores de verdade para cada propriedade e, em particular, para os objectos da lista. A expressão pode ser limitada, se se observar que os objectos que possuem a propriedade \(L_1\) de ter comprimento unitário podem assumir as cores azul ou azul e verde. Assim, é verdade que \(L_1\to\left(C_A\land\neg C_V\land\neg C_M\right)\), sendo idênticas as expressões que limitam as possibilidades para as cores aos objectos com as propriedades \(L_2\) e \(L_3\). Tem-se, finalmente,
\[\begin{array}{l}F=\left(T\oplus R\right)\land\left(L_1\oplus L_2\oplus L_3\right)\land\left(C_A\lor C_V\lor C_D\lor C_M\right)\land\\ \land\left(L_1\to\left(C_A\land\neg C_V\land\neg C_M\right)\right)\land\left(\left(R\land L_1\right)\to\left(C_A\land C_D\land\neg C_M\land\neg C_D\right)\right)\land\\ \land\left(L_2\to\left(C_M\land\neg C_A\land\neg C_D\land\neg C_V\right)\right)\land\left(L_3\to\left(C_V\land\neg C_A\land\neg C_M\land\neg C_D\right)\right)\end{array}\]
O funcional \(G\) que permite definir todas as combinações de cores dos objectos na lista é dado por
\[\begin{array}{l}G=\left(C_A\lor C_V\lor C_D\lor C_M\right)\land\left(L_1\to\left(C_A\land\neg C_V\land\neg C_M\right)\right)\land\\ \land\left(\left(R\land L_1\right)\to\left(C_A\land C_D\land\neg C_M\land\neg C_D\right)\right)\land\\ \land\left(L_2\to\left(C_M\land\neg C_A\land\neg C_D\land\neg C_V\right)\right)\land\\ \land\left(L_3\to\left(C_V\land\neg C_A\land\neg C_M\land\neg C_D\right)\right)\end{array}\]
Se se pudesse estender a lista, considerando as \(2^9\) possibilidades, entre elas ir-se-iam encontrar objectos que seriam simultaneamente triângulos e rectângulos. No entanto, dado que \(\forall x H(x)\), com
\[\begin{array}{l}H=\left(T\to\neg R\right)\land\left(R\to\neg T\right)\land\left(L_1\to\neg\left(L_2\lor L_3\right)\right)\land\\ \land\left(L_2\to\neg\left(L_1\lor L_3\right)\right)\land\left(L_3\to\left(L_1\lor L_2\right)\right)\end{array}\]
tais possibilidades serão sempre reduzidas a \(2\times 3\times 2^4\). Consideram-se os funcionais expressos por \(H\) verdadeiros, não importa qual o objecto considerado. Diz-se tratar-se de verdades necessárias. Permitem afirmar que tanto os objectos conhecidos da lista as satisfazem como os objectos que não se encontram na lista. O funcional \(G\), por seu turno, descreve uma verdade contingente, isto é, vale no caso dos \(6\) objectos conhecidos da lista mas que não valem nos restantes \(6\times\left(2^4-1\right)\) que, apesar de não pertencerem à lista, também podem ocorrer. Aliás, objectos com as mesmas propriedades dos que os que estão na lista poderão ocorrer num outro lugar, sendo necessárias propriedades adicionais para caracterizarem os que pertencem à lista como os que não pertencem. O papel da ciência consiste, portanto, em estabelecer verdades contigentes que cada vez mais se aproximem de verdades necessárias, dentro dos limites do que realmente pode ser mensurável. Por seu turno, dado o carácter de convenção entre o que é que pode ou não existir para além do que se conhece, nada impede de construir realidades alternativas onde, algures, uma figura pode ser, por exemplo, simultaneamente rectangular e triangular, ou ter uma propriedade abstracta, tal como "ser bonito" que pode ser subtraída sem alterar a descrição causal dos objectos da lista. É nessa liberdade que reside uma das grandes dificuldades do problema da demarcação.

Relações

As frases com apenas um sujeito ao qual é submetido um predicado, tais como "há objectos \(O\) do tipo \(T\)", são transcritas na função lógica
\[\exists x \left(O\land T\right)(x)\]
De acordo com a teoria da verdade, deverá existir um procedimento que permita avaliar a veracidade de \(O(x)\) e de \(T(x)\) para qualquer referência mental \(x\) que tenha sido criada durante o discurso, por intermédio dos sentidos ou de simples concepções mentais. O conceito é generalizável a frases do tipo "há objectos \(O_1\) do tipo \(T_1\) e objectos \(O_2\) do tipo \(T_2\) e objectos \(O_3\) do tipo \(T_3\) que estão na relação \(R\) entre si". Esta setença admite a representação
\[\exists x\land\exists y\exists z \left(P_1\land T_1(x)\right) \left(O_2\land T_2\right)(y)\land \left(O_3\land T_3\right)(z) \land R(x,y,z)\]
É necessário, para além da caracterização dos objectos e respectivos tipos, caracterizar a relação. De modo a ilustrar o conceito de relação, considere-se o exemplo dos seis objectos considerados na secção anterior e a relação \(R(x,y)\) "têm a mesma forma". Ora, dois objectos têm a mesma forma se forem ambos triângulos ou forem ambos rectângulos. A sua carterização coloca-se do seguinte modo
\[R(x,y)=\left(T(x)\land\neg R(x)\land T(y)\land\neg R(y)\right)\lor\left(R(x)\land\neg T(x)\land R(y)\land\neg T(y)\right)\]
A frase "os objectos \(1\) e \(4\) têm a mesma forma" admitirá a seguinte representação lógica
\[\begin{array}{l}\exists! x\exists! y \cdots\land T(x)\land\neg R(x)\land\cdots\land R(y)\land\\ \land\neg T(y)\land\left(\left(T(x)\land\neg R(x)\land T(y)\land\neg R(y)\right)\lor\\ \lor\left(R(x)\land\neg T(x)\land R(y)\land\neg T(y)\right)\right)\end{array}\]
Não é tarefa difícil determinar que se trata de uma expressão falsa, já que envolve conjunções de propriedades contraditórias, que está em conflito com o princípio da não-contradição.
Frases como "o azul do objecto \(O_1\) é mais intenso do que o do objecto \(O_2\)" têm significado semântico e parecem estabelecer relações entre propriedades. É claro que a propriedade \(A\) de ser azul é dada por \(A_1\lor A_2\), onde \(A_1\) permite especificar o azul do objecto \(O_1\) e \(A_2\), o azul do objecto \(O_2\). A sentença deverá ser parafraseada de modo a que a relação incida sobre referências a objectos, nem que estes constituam representações mentais das propriedades. A relação deverá assumir o valor lógico verdadeiro apenas no caso em que o primeiro argumento seja dado por \(A_1\) e nenhuma outra cor e o segundo por \(A_2\) e nenhuma outra cor, isto é,
\[\exists!x \exists!y O_1(x)\land O_2(y)\land I(x,y)\]
A função \(I(x,y)\) caracteriza-se por
\[A_1(x)\land\neg A_2(x)\land A_2(y)\land\neg A_1(y)\land\neg\left(C_i\right)\]
onde \(C_i\) corresponde à disjunção das restantes cores. A frase deverá ser interpretada como "o objecto \(O_1\) está na relação com o objecto \(O_2\) de ter um azul mais intenso".
Dado que as propriedades constituem funções lógicas sobre referências mentais, é possível efectuar a descrição da realidade unicamente com base em relações. Com efeito, o facto de se dizer que um determinado objecto \(O\) tem uma determinada cor \(C_i\) e este facto corresponder a uma realidade do mundo concreto, é resultado de um estado de matéria que envolva o objecto, os sentidos do emissor e os circuitos neuronais que serão responsáveis pela identificação das cores. Coloca-se, portanto, a hipótese de que alguns dos circuítos neuronais activados contêm pelo menos um modelo daquilo que é percebido pela cor \(C_i\). Deverá existir no interlocutor a memória dessa cor. Essa memória, estando ao nível mental e, consequentemente, das representações dos objectos concretos, poderá ser sujeita ao mesmo tratamento lógico. Se se designar por \(c_i\) a representação mental da memória da cor \(C_i\) e por \(x\) a representação mental do objecto \(O\) então a frase "o objecto \(O\) tem a cor \(C_i\)" poderá ser estabelecida pela frase equivalente
\[\exists!x\exists c_i\exists y\exists ...\exists a\exists ... R(x,y,\cdots,a,b,...)\land P\left(x,c_i\right)\]
A relação \(P\left(x,c\right)\) poderá ser entendida como "o objecto cuja representação mental é \(x\) tem a propriedade cuja representação mental é \(c_i\)". A relação \(R\), estabelecida sobre representações mentais de outros objectos concretos, \(y,z,\cdots\) e representações mentais de propriedades \(a,b,\cdots\) permite caracterizar o objecto \(O\). A descrição em termos de relações é equivalente à descrição em termos de propriedades se se considerar que
\[\forall x \forall c C_i(x)\land C_i(c)\leftrightarrow P\left(x,c\right)\]
A descrição apenas em termos de relações é mais confortável quando se pretende descrever determinados objectos com base apenas nas relações que existem entre si, independentemente de qualquer propriedade intrínseca. Por exemplo, de dois objectos \(O_1\) e \(O_2\) dos quais não se conhecem propriedades intrínsecas é possível distingui-los, assumindo válida, por exemplo, a relação \(M(x,y)\), "\(x\) é maior do que \(y\)". É claro que é possível definir duas propriedades \(T_1\) e \(T_2\), que se poderão designar por "tamanhos", de modo que \(O_1=T_1\) e \(O_2=T_2\) e a relação se caracteriza por \(M=T_1\land\neg T_2\) para descrever a mesma realidade. Neste caso, a abordagem em termos de propriedades afigura-se mais elaborada. Por outro lado, a descrição com base em apenas relações permite dar sentido a frases que envolvem apenas propriedades, tais como "a cor \(C_1\) é mais agradável do que a cor \(C_2\)", dado que esta incide directamente sobre as representações mentais das propriedades em questão, sem o recurso a artifícios epistemológicos.

Medições, grandezas, magnitudes e as leis científicas

De modo a estabelecer a veracidade da representação mental de um objecto no mundo concreto é necessário que se verifique uma interacção desse objecto com os sentidos. O objecto e os sentidos do observador deverão compôr um estado da matéria complexo ou, por outras palavras, deverá existir uma relação causal entre a existência de um objecto e um estímulo sensorial do observador. Este procedimento não limita a existência dos objectos apenas a mundos onde exitam observadores mas demarca as limitações associadas à determinação da veracidade da descrição de tais mundos. Nada impede, por exemplo, a concepção de um mundo composto por duas partículas indistinguíveis. No entanto, a verificação da validade de tal concepção requer uma relação causal entre cada uma das partículas e o observador, devendo o observador estar incluído nesse mundo e de aí existirem estados complexos, para além do da manifestação em duas partículas, que incluam os estímulos sensoriais. O estado de matéria nesse mundo cessa de se manifestar na forma de duas partículas.
É tangível considerar que determinados estados que não envolvam os sentidos de um observador possam integrar estados mais complexos que o façam. Dois exemplos conhecidos obtêm-se dos âmbitos da cosmologia e da microcosmologia. De facto, estados compostos por galáxias distantes ou microorganismos e a luz que emitem ou reflectem, podem ser integrados em estados mais complexos definidos pela observação através de um telescópio ou microscópio de forma a incluírem a sensibilização dos olhos e consequentes activações dos circuitos neuronais correspondentes. Obtêm-se, assim, representações mentais de objectos que se apresentam aos sentidos de forma indirecta e que se descrevem por propriedades ou relações.
Uma medição consiste num processo de averiguar a verdade concreta de uma representação mental, quer de forma directa, por intermédio dos sentidos, quer de forma indirecta através da interposição de um processo de instrumentação. Deste modo, se se pretender determinar a veracidade de uma representação mental face ao mundo concreto, é necessário efectuar uma medição cujo processo deverá estar associado à propriedade cuja veracidade é determinada. É tangível, por exemplo, que um objecto tenha uma cor \(C_1\) quando observado diractamente e uma cor \(C_2\) quando observado através de um filtro ou seja iluminado por luz de cor \(C_3\). A avaliação da veracidade relativa ao facto do objecto ter cor \(C_1\) ou cor \(C_2\) requer a identificação, quer de forma implícita, quer explícita, da medição que se deverá efectuar e quais as circunstâncias da sua realização. A veracidade é tanto mais corroborada quantos mais indivíduos a submeterem à observação.
No exemplo acima, foram considerados objectos triangulares e rectangulares onde um dos lados é considerado unitário. Observou-se ainda que seria suficiente caracterizar cada um dos objectos pela forma, \(R\) ou \(T\), comprimento do outro lado \(L_1\), \(L_2\) ou \(L_3\), e a cor, \(C_A\), \(C_V\), \(C_D\) e \(C_M\). Observou-se ainda que para todo o objecto \(x\) não se pode verificar simultâneamente mais do que uma propriedade de entre \(L_1\), \(L_2\) e \(L_3\). Trata-se da representação lógica do conhecimento de que o processo de medição implicitamente associado à sua validação descartará como falsas quaisquer representações mentais que assumam simultanemanete verdadeiras duas ou mais propriedades da forma \(L_i\). Do ponto de vista metafísico, nada impede de considerar objectos sobre os quais se verificam, em simultâneo, duas ou mais dessas propriedades, uma vez que aqui pode ser desconsiderado qualquer processo de medição. Porém, para determinar a validade da concepção no mundo concreto, é necessário elaborar um procedimento de medição no qual faça sentido a verificação simultânea de mais do que uma dessas propriedades. No exemplo concreto de uma mola que oscila em torno do seu ponto de equilíbrio, vários comprimentos poderão ser obtidos numa medição, um comprimento para cada instante considerado.
Leis naturais são conjuntos de concepções mentais lógicas não contraditórias, proporcionadas por propriedades e relações com procedimentos de medição bem definidos cuja validade se tenha verificado em domínios extensos. Entre as leis naturais destacam-se as que resultam de um processo de intuição, como é o caso da caracterização. Dizer que todos os mamíferos possuem sistema circulatório poderá ser uma intuição se se verificar a existência de animais com sistema circulatório e se a propriedade de ter sistema circulatório faz parte da sua caracterização. Será uma lei se o facto de possuir sistema circulatório não caracterize um mamífero, apesar de todos os animais que se caracterizam como mamíferos possuírem sistema circulatório.
Teorias científicas, por seu turno, são conjuntos de leis naturais cujos procedimentos de medição, válidos em domínios extensos mas limitados, se extrapolam a extensões inatingíveis desses limites. Estas dever-se-ão verificar, enquanto leis, quando são aplicados os processos de medição que permitam averiguar a sua veracidade à extensão do domínio conhecido, sempre que isso seja possível. Enquadram-se neste âmbito, para além das teorias cujos processos de medição podem ser constantemente aplicados a novos domínios, as teorias científicas da origem do sistema solar ou da origem da vida que, mesmo que estando assentes em domínios inatingíveis, são parte integrante da extensão do domínio dos respectivos estados conhecidos. É necessário enfatizar a importância da não contrariedade das concepções mentais, já que daqui resulta que nenhum ramo da ciência poderá estar em contradição com outro. Se, por exemplo, uma lei biológica parece violar algum princípio físico, advêm daqui três hipóteses. O processo de medição deverá ser revisto de modo a certificar a veracidade da lei. Se se verificar a lei biológica, deverá ser revista a lei física que está a ser violada de modo a explicar o fenómeno biológico, especificando o novo processo de medição. Caso contrário, não se está perante uma lei científica.
Seja \(L=L_1\oplus L_2\oplus L_n\) a função lógica que designa a função \(L\) que caracteriza, de um modo geral, todos os objectos que são caracterizados pelas propriedades \(L_1\), \(L_2\) ou \(L_3\). A disjunção exclusiva resulta do facto de que o processo de medição permite determinar que o objecto não pode ser simultaneamente caracterizado por mais do que um \(L_i\). Suponha-se que é possível refinar o processo de medição de modo que \(L_1=L'_{11}\oplus L'_{12}\), \(L_2=L'_{21}\oplus L'_{22}\) e \(L_3=L'_{31}\oplus L'_{32}\). Um exemplo concreto consiste na consideração de instrumentos de medida com uma escala mais refinda. Suponha-se, ainda, que, quando dois objectos \(O_1\), caracterizado por \(L_i\) e \(O_2\), caracterizado por \(L_j\), quando colocados numa relação \(R\) entre eles, se possa associar, a essa relação, a propriedade \(L_k\) de tal forma que as etiquetas escolhidas possam ser tais que \(i+j=k\) qualquer que seja a relação. A massa e o comprimento encontram-se entre os exemplos mais comuns deste tipo de propriedades. Diz-se que \(L\) é a grandeza e o índice, quando escolhido de forma aritmética, a magnitude.
Numa descrição em termos de relações, uma lei matemática da ciência consiste numa relação matemática entre magnitudes de várias grandezas. Por exemplo, de acordo com a lei clássica da atracção gravítica, sempre que forças de outras natureza não estejam aplicadas,
\[\forall x\forall y M_i(x)\land M_j(y)\land D_k(x,y)\leftrightarrow F_{\frac{Gm_im_j}{k^2}}(x,y)\]
Aqui \(F\) representa a relação simétrica que representa o facto de existir um par de forças com a mesma intensidade que actua, cada uma, sobre cada um dos corpos.
É interessante notar que não é possível determinar um processo de medição que permita avaliar um número infinito de propriedades, uma vez que o respectivo resultado iria requerer a memorização de uma quantidade infinita de informação. Deste modo, dizer que uma partícula parte do ponto \(A\) e chega ao ponto \(B\) num interavalo de tempo \(\Delta t\) com uma velocidade constante passa por uma infinidade de posições é apenas metafisicamente válido, dado que, para determinar a veracidade da afirmação, seria necessário efectuar uma medição que proporcionasse um conjunto infinito de propriedades. No entanto, é sempre permitido dizer que, qualquer que seja a medição que se faça após a partida da partícula e antes da sua chegada, esta irá sempre encontrar-se numa posição intermédia. Esta observação permite eliminar da consideração quaisquer paradoxos relacionados com a consideração do infinito. Talvez sejam esses paradoxos a principal razão para assumir que a partícula não passe continuamente por uma infinidade de posições mesmo quando o fenómeno é considerado do ponto de vista metafísico. De facto, uma lei matemática permite prever a propriedade verificada por uma determinada experiência e verificar-se sempre que a medição seja realizada. No entanto, o que acontece entre medições será sempre especulação metafísica.

terça-feira, 30 de março de 2021

O átomo de hidrogénio de acordo com a mecânica quântica

 De acordo com o modelo planetário, os átomos são, em princípio, compostos por um núcleo de carga positiva em torno do qual orbitam electrões. A maior parte da massa do átomo encontra-se condensada no núcleo. Denotando por \(e\) a carga do electrão, o átomo do hidrogénio seria constituído por um núcleo de carga \(+e\) em torno do qual orbita um electrão de carga \(-e\). De acordo com a mecânica clássica, o movimento de um tal sistema obtém-se a partir da função \(L=T-V\), onde \(T\) é a energia cinética e \(V\) a energia potencial do sistema, da forma

\[L=\frac{1}{2}m_n\left(\frac{d\vec{r}_n}{dt}\right)^2+\frac{1}{2}m_2\left(\frac{d\vec{r}_e}{dt}\right)^2+\frac{1}{4\pi\varepsilon_0}\frac{e^2}{\left\Vert \vec{r}_n-\vec{r}_e\right\Vert}\]

Aqui \(\vec{r}_n\) e \(\vec{r}_e\) proporcionam, respectivamente, as posições do núcleo e do electrão. A posição do centro de massa do sistema é dada por

\[\vec{R}=\frac{m_n\vec{r}_n+m_e\vec{r}_e}{m_n+m_e}\]

Considerando o referencial cuja origem se encontra no centro de massa, tem-se

\[\left\lbrace\begin{array}{l}r_n^*=\vec{r}_n-\vec{R}=\frac{m_e}{m_n+m_e}\left(\vec{r}_e-\vec{r}_n\right)\\ \vec{r}_e^*=\vec{r}_e-\vec{R}=\frac{m_n}{m_n+m_e}\left(\vec{r}_e-\vec{r}_n\right)\end{array}\right.\]

A substituição da transformação

\[\left\lbrace\begin{array}{l}\vec{r}_n=\vec{r}_n^*+\vec{R}\\ \vec{r}_e=\vec{r}_e^*+\vec{R}\end{array}\right.\]

na função \(L\) conduz à nova expressão

\[L=\frac{1}{2}M\left(\frac{d\vec{R}}{dt}\right)^2+\frac{1}{2}\mu{\left(\frac{d\vec{r}}{dt}\right)^2}+\frac{1}{4\pi\varepsilon_0}\frac{e^2}{\left\Vert \vec{r}\right\Vert}\]

onde \(M=m_n+m_e\), \(\vec{r}=\vec{r}_e-\vec{r}_n\) e

\[\mu=\frac{m_nm_e}{m_n+m_e}\]

Seja \(\vec{r}=\left(x,y,z\right)\) e \(\vec{R}=\left(X,Y,Z\right)\) escritos nas suas componentes em coordenadas rectangulares. Os momentos associados calculam-se como

\[\begin{array}{lll}P_X=\frac{\partial L}{\partial X'}=MX', & P_Y=\frac{\partial L}{\partial Y'}=MY', & P_Z=\frac{\partial L}{\partial Z'}=MZ'\\ p_x=\frac{\partial L}{\partial x'}=\mu x', & p_y=\frac{\partial L}{\partial y'}=\mu y', & p_z=\frac{\partial L}{\partial z'}=\mu z'\end{array}\]

A função \(H=X'P_x+Y'P_Y+Z'P_Z+x'p_x+y'p_y+z'p_z-L\), quando escrita em termos dos momentos fica da forma

\[H=\frac{P_X^2+P_Y^2+P_Z^2}{2M}+\frac{p_x^2+p_y^2+p_z^2}{2\mu}-\frac{e^2}{4\pi\varepsilon_0\sqrt{x^2+y^2+z^2}}\]

Em termos da mecânica clássica, as equações que descreveriam o movimento do sistema seriam dadas por

\[\left\lbrace\begin{array}{lll}P_X'=-\frac{\partial H}{\partial X}, & P_Y'=-\frac{\partial H}{\partial Y}, & P_Z'=-\frac{\partial H}{\partial Z}\\ X'=\frac{\partial H}{\partial P_X}, & Y'=\frac{\partial H}{\partial P_Y}, & Z'=\frac{\partial H}{\partial P_Z}\\ p_x'=-\frac{\partial H}{\partial x}, & p_y=-\frac{\partial H}{\partial y}, & p_z'=-\frac{\partial H}{\partial z}\\ x'=\frac{\partial H}{\partial p_x}, & y'=\frac{\partial H}{\partial p_y}, & z'=\frac{\partial H}{\partial p_z}\end{array}\right.\]

Em mecânica quântica, considera-se que o sistema é descrito por uma função de onda das coordenadas consideradas e do tempo, \(\psi(X,Y,Z,x,y,z,t)\), a qual é solução da equação diferencial às derivadas parciais que se obtém de \(H\), substituindo cada um dos momentos pelo operador que determina a derivada parcial em ordem à coordenada que lhe está associada. Por exemplo, o momento \(P_X\) que se determina a partir de \(L\), considerando a derivada parcial em ordem a \(X'\), é substituído peloa operador \(\hbar\frac{\partial}{\partial X}\). A mesma substituição deverá ser considerada sobre todos os operadores. A equação de onda escreve-se, para este caso, como

\[\frac{\hbar^2}{2M}\nabla_{\vec{R}}^2\psi+\frac{\hbar^2}{2\mu}\nabla_{\vec{r}}^2\psi+\frac{e^2\psi}{4\pi\varepsilon_0\sqrt{x^2+y^2+z^2}}=-i\hbar\frac{\partial\psi}{\partial t}\]

onde

\[\nabla_{\vec{R}}^2\psi=\frac{\partial^2\psi}{{\partial X}^2}+\frac{\partial^2\psi}{{\partial Y}^2}+\frac{\partial^2\psi}{{\partial Z}^2}\]

e

\[\nabla_{\vec{r}}^2\psi=\frac{\partial^2\psi}{{\partial x}^2}+\frac{\partial^2\psi}{{\partial y}^2}+\frac{\partial^2\psi}{{\partial z}^2}\]

É útil aplicar o método da seperação das variáveis. Deste modo, faz-se

\[\psi(X,Y,Z,x,y,z,t)=\psi(X,Y,Z,x,y,z)\phi(t)\]

A substituição na equação de onda resulta em

\[\frac{1}{\psi}\left(\frac{\hbar^2}{2M}\nabla_{\vec{R}}^2\psi+\frac{\hbar^2}{2\mu}\nabla_{\vec{r}}^2\psi\right)+\frac{e^2}{4\pi\varepsilon_0\sqrt{x^2+y^2+z^2}}=-i\hbar\frac{d\phi}{dt}\]

Ora, o membro esquerdo da equação depende apenas da posição do centro de massa e da posição relativa do núcleo e do electrão. O membro direito, por seu turno, depende apenas do tempo. Tal é apenas possível no caso em que ambos os membros igualam uma constante \(-E\). Tem-se, por um lado,

\[-i\hbar\frac{d\phi}{dt}=-E\]

cuja solução é dada por

\[\phi=Ae^{-\frac{iEt}{\hbar}}\]

em que \(A\) é a constante de integração e, por outro, a equação

\[\frac{\hbar^2}{2M}\nabla_{\vec{R}}^2\psi+\frac{\hbar^2}{2\mu}\nabla_{\vec{r}}^2\psi+\frac{e^2\psi}{4\pi\varepsilon_0\sqrt{x^2+y^2+z^2}}=-E\psi\]

Trata-se da equação independente do tempo. Aplica-se o método da separação das variáveis a esta equação, fazendo,

\[\psi(X,Y,Z,x,y,z)=\chi(X,Y,Z)\psi(x,y,z)\]

A equação separa-se, portanto, nas equações

\[\frac{\hbar^2}{2M}\nabla_{\vec{R}}^2\chi=(-E+\mathcal{E})\chi\]

e

\[\frac{\hbar^2}{2\mu}\nabla_{\vec{r}}^2\psi+\frac{e^2\psi}{4\pi\varepsilon_0\sqrt{x^2+y^2+z^2}}=-\mathcal{E}\psi\]

onde \(-\mathcal{E}\) é a constante resultante da separação. Ora, a equação sobre \(\chi\) descreve o movimento do centro de massa do átomo, considerado como uma partícula livre. Aplique-se aqui também o método da separação das variáveis, fazendo

\[\chi(X,Y,Z)=f(X)g(Y)h(Z)\]

A substituição na equação para o centro de massa resulta em

\[\frac{1}{f}\frac{d^2f}{dX^2}+\frac{1}{g}\frac{d^2g}{dY^2}+\frac{1}{h}\frac{d^2h}{dZ^2}=\frac{2M}{\hbar}(-E+\mathcal{E})\]

Dado que cada uma das funções, \(f\), \(g\) e \(h\) dependem de variáveis diferentes, a equação será possível apenas quando

\[\left\lbrace\begin{array}{l}\frac{1}{f}\frac{d^2f}{dX^2}=-\sigma_X^2\\ \frac{1}{g}\frac{d^2g}{dY^2}=-\sigma_Y^2\\ \frac{1}{h}\frac{d^2h}{dZ^2}=-\sigma_Z^2\\ \frac{\hbar}{2M}\left(\sigma_X^2+\sigma_Y^2+\sigma_Z^2\right)=E-\mathcal{E}\end{array}\right.\]

É claro que a escolha das constantes obtidas na separação das variáveis poderia ser arbitrária. Porém, dado que é condição que a função de onda não aumente indefinidamente à medida que o valor das variáveis aumenta, tais constantes deverão assumir um valor negativo, representado genericamente por \(\sigma_i^2\). A determinação das soluções das equações diferenciais que determinam \(f\), \(g\) e \(h\) não constitui grande dificuldade, sendo estas dadas por

\[\left\lbrace\begin{array}{l}f(X)=A_Xe^{i\sigma_XX}+B_Xe^{-i\sigma_XX}\\ g(Y)=A_Ye^{i\sigma_YY}+B_Ye^{-i\sigma_YY}\\ h(Z)=A_Ze^{i\sigma_ZZ}+B_Ze^{-i\sigma_ZZ}\end{array}\right.\]

As soluções da equação de onda que não depende do tempo são da forma

\[\chi_{\vec{\sigma}}=A_{\vec{\sigma}}e^{i\vec{\sigma}\cdot\vec{R}}\]

em que \(\vec{\sigma}=\left(\sigma_X,\sigma_Y,\sigma_Z\right)\) e \(\vec{R}=(X,Y,Z)\) são o vector número de onda e o vector posição. Considera-se a solução normalizada na forma

\[\chi_{\vec{\sigma}}=\frac{1}{\sqrt{\pi^3}}e^{i\vec{\sigma}\cdot\vec{R}}\]

dado que assim satisfará a propriedade orthogonal

\[\int_{V}{\chi_\vec{\sigma}\left(\vec{R}\right)\bar{\chi}_{\vec{\sigma}'}\left(\vec{R}\right)dXdYdZ}=\delta\left(\vec{\sigma}-\vec{\sigma}'\right)\]

em que o integral é estendido sobre todo o espaço \(V\) e \(\delta\left(\vec{\sigma}-\vec{\sigma}'\right)\) é tal que

\[\int_V{f\left(\vec{\sigma}\right)\delta\left(\vec{\sigma}-\vec{\sigma}'\right)d\sigma_Xd\sigma_Yd\sigma_Z}=f\left(\vec{\sigma}'\right)\]

Suponha-se que \(f\left(\vec{R}\right)\) é uma função arbitrária e suponha-se que esta possa ser escrita como uma soma dos \(\chi_{\vec{\sigma}}\left(\vec{R}\right)\) da forma

\[f\left(\vec{R}\right)=\int_V{k\left(\vec{\sigma}\right)\chi_{\vec{\sigma}}\left(\vec{R}\right)d\sigma_Xd\sigma_Yd\sigma_Z}\]

Se se multiplicar a equação anterior por \(\bar{\chi}_{\vec{\sigma}'}\) e integrar \(\vec{R}\) sobre todo o espaço \(V\) obtém-se

\[\int_V{\bar{\chi}_{\vec{\sigma}'}f\left(\vec{R}\right)dXdYdZ}=\int_V{k\left(\vec{\sigma}\right)\delta\left(\vec{\sigma}-\vec{\sigma}'\right)}=k\left(\vec{\sigma}'\right)\]

A propriedade ortogonal torna-se útil, deste modo, para determinar a forma da função \(k\left(\vec{\sigma}\right)\) que figura na representação da função \(f\left(\vec{R}\right)\). Os integrais convergem sempre que o integral sobre todo o espaço do quadrado do modulo da função exista. São estas, contudo, as funções de interesse em mecânica quântica.

O método da separação das variáveis não é aplicável directamente à equação

\[\frac{\hbar^2}{2\mu}\nabla_{\vec{r}}^2\psi+\frac{e^2\psi}{4\pi\varepsilon_0\sqrt{x^2+y^2+z^2}}=-\mathcal{E}\psi\]

devido à função que representa o potencial eléctrico. Porém, a consideração das coordenadas esféricas permite escrever o potencial como função de uma coordenada apenas, isto é, de

\[r=\sqrt{x^2+y^2+z^2}\]

Considere-se, portanto, a lei de transformação para coordenadas esféricas,

\[\left\lbrace\begin{array}{l}x=r\sin\theta\cos\varphi\\ y=r\sin\theta\sin\varphi\\ z=r\cos\theta\end{array}\right.\]

Neste novo sistema de coordenadas tem-se

\[\nabla^2_{\vec{r}}\psi=\frac{1}{r^2}\frac{\partial}{\partial r}\left(r^2\frac{\partial\psi}{\partial r}\right)+\frac{1}{r^2\sin\theta}\frac{\partial}{\partial\theta}\left(\sin\theta\frac{\partial\psi}{\partial\theta}\right)+\frac{1}{r^2\sin^2\theta}\frac{\partial^2\psi}{\partial\varphi^2}\]

Quando escrita neste sistema de coordenadas, a equação é separável. Faz-se, portanto,

\[\psi(r,\theta,\varphi)=\psi_r(r)\psi_{\theta\varphi}(\theta,\varphi)\]

e substitui-se na equação correspondente, considerando-a escrita nas coordenadas esféricas. Daqui resulta o sistema de equações

\[\left\lbrace\begin{array}{l}\frac{d}{dr}\left(r^2\frac{d\psi_r}{dr}\right)+\left(\frac{2\mu}{\hbar^2}\mathcal{E}r^2+\frac{2\mu}{\hbar^2}\frac{e^2r}{4\pi\varepsilon_0}-\lambda\right)\psi_r=0\\ \frac{1}{\sin\theta}\frac{\partial}{\partial\theta}\left(\sin\theta\frac{\partial\psi_{\theta\varphi}}{\partial\theta}\right)+\frac{1}{\sin^2\theta}\frac{\partial^2\psi_{\theta\varphi}}{\partial\varphi^2}+\lambda\psi_{\theta\varphi}=0\end{array}\right.\]

Considera-se agora \(\psi_{\theta\varphi}(\theta,\varphi)=\psi_\theta(\theta)\psi_\varphi(\varphi)\) para separar a segunda equação. O mesmo princípio conduz finalmente às equações diferenciais


\[\left\lbrace\begin{array}{l}\frac{d}{dr}\left(r^2\frac{d\psi_r}{dr}\right)+\left(\frac{2\mu}{\hbar^2}\mathcal{E}r^2+\frac{2\mu}{\hbar^2}\frac{e^2r}{4\pi\varepsilon_0}-\lambda\right)\psi_r=0\\ \frac{d}{d\theta}\left(\sin\theta\frac{d\psi_\theta}{d\theta}\right)+\left(\lambda\sin\theta-\frac{m^2}{\sin\theta}\right)\psi_\theta=0\\ \frac{d^2\psi_\varphi}{d\varphi^2}+m^2\psi_\varphi=0\end{array}\right.\]

O parâmetro \(m^2\) foi escolhido de modo a que a última equação diferencial proporcione soluções limitadas quando \(\varphi\to\infty\). A solução geral dessa equação vem dada por

\[\psi_\varphi=Ae^{im\varphi}+Be^{-im\varphi}\]

Um outro requisito para que a equação de onda seja aceitável para a descrição de um sistema físico é de que seja uma função contínua e injectiva. Neste caso, serão apenas válidas as soluções que satisfaçam a condição \(\psi_\varphi(\varphi+2\pi)=\psi_\varphi(\varphi)\). Tal só é possível se \(m\) assumir um valor inteiro, isto é, \(m=0,\pm 1, \pm 2, \cdots\). Considere-se agora a segunda equação, nomeadamente,

\[\frac{d}{d\theta}\left(\sin\theta\frac{d\psi_\theta}{d\theta}\right)+\left(\lambda\sin\theta-\frac{m^2}{\sin\theta}\right)\psi_\theta=0\]

Faz-se \(x=\cos\theta\) na equação anterior, ficando

\[\frac{d}{dx}\left(\left(1-x^2\right)\frac{d\psi_\theta}{dx}\right)+\left(\lambda-\frac{m^2}{1-x^2}\right)\psi_\theta=0\]

A solução é obtida no intervalo \(\lbrack -1,1\rbrack\), substituindo a função \(\psi_\theta\) por uma série de potências e determinando os respectivos coeficientes. Mostra-se, desse modo, que as soluções particulares se podem escrever de várias formas por intermédio de funções hipergeométricas. A análise da sua convergência permite concluir que, de entre as soluções particulares, apenas aquelas que são dadas por polinómios são limitadas nesse intervalo, isto é, aquelas cuas séries de potências possuem um número finito de termos e os valores próprios correspondentes são da forma

\[\lambda=l(l+1)\]

onde \(l\) é um número inteiro, desde que \(-l\le m\le l\). Denota-se cada uma das soluções correspondentes por \(P_{l,m}(x)\). De seguida, apresentam-se as propriedades destas funções que terão utilidade no que se segue. As respectivas demonstrações e um estudo mais detalhado poderão ser encontradas em qualquer texto sobre harmónicos esféricos.

Os harmónicos esféricos podem ser determinados por intermédio das seguintes relações de recorrência.

\[\left\lbrace\begin{array}{l}P_{l,0}=\frac{1}{2^ll!}\frac{d^l}{dx^l}\left(x^2-1\right)^l\\ P_{l,m}=\left(1-x^2\right)^{\frac{m}{2}}\frac{d^m}{dx^m}P_{l,0}\end{array}\right.\]

Um resultado importante na teoria dos harmónicos esféricos permite indicar a sua ortogonalidade e é dado por

\[\int_{-1}^1{P_{l,m}(x)P_{l',m'}(x)}=\left\lbrace\begin{array}{ll}0, & l\ne l'\\ \frac{(l+m)!}{(l-m)!}\frac{2}{2l+1}, & l=l'\end{array}\right.\]

O método da separação, quando aplicado à equação

\[\frac{1}{\sin\theta}\frac{\partial}{\partial\theta}\left(\sin\theta\frac{\partial\psi_{\theta\varphi}}{\partial\theta}\right)+\frac{1}{\sin^2\theta}\frac{\partial^2\psi_{\theta\varphi}}{\partial\varphi^2}+\lambda\psi_{\theta\varphi}=0\]

conduz a soluções da forma

\[Y_{l,m}(\theta,\varphi)=P_{l,\vert m\vert}\left(\cos\theta\right)e^{im\varphi}\]

notando que \(m\) é inteiro e \(-l\le m\le l\). As funções recebem a designação de harmónicos esféricos e satisfazem a propriedade ortogonal dada por

\[\int_0^{2\pi}\int_{0}^\pi{Y_{l,m}(\theta,\varphi)Y_{l',m'}(\theta,\varphi)\sin\theta d\theta d\varphi}=\left\lbrace\begin{array}{ll}1, & l=l'\land m=m'\\ 0, & l\ne l'\lor m\ne m'\end{array}\right.\]

Resta, portanto, determinar a solução da equação diferencial em \(r\),

\[\frac{d}{dr}\left(r^2\frac{d\psi_r}{dr}\right)+\left(\frac{2\mu}{\hbar^2}\mathcal{E}r^2+\frac{2\mu}{\hbar^2}\frac{e^2r}{4\pi\varepsilon_0}-l(l+1)\right)\psi_r=0\]

Faz-se aqui

\[\mathcal{E}=-\frac{\mu e^4}{2\hbar^2\left(4\pi\varepsilon_0\rho\right)^2}\]

e introduz-se a variável

\[r=\frac{4\pi\varepsilon_0\rho\hbar^2}{2\mu e^2}x\]

A equação anterior fica reduzida a

\[\frac{d}{dx}\left(x^2\frac{d\psi_r}{dx}\right)+\left(-\frac{1}{4}x^2+\rho x-l(l+1)\right)\psi_r=0\]

Aplica-se a substituição \(\psi_r=w(x)e^{-x/2}\) vindo, para \(w(x)\), a equação diferencial

\[\frac{d^2w}{dx^2}+\left(\frac{2}{x}-1\right)\frac{dw}{dx}+\left(\frac{\rho-1}{x}-\frac{l(l+1)}{x^2}\right)w=0\]

Tal como acima, esta equação resolve-se com o auxílio do método das séries de potências. As únicas soluções da equação anterior são aquelas cujas séries se reduzem a funções polinomiais. Tal acontece apenas quando se verifica a identidade \(\rho=\nu+l+1\) onde \(\nu\) é um número inteiro positivo. As soluções polinomiais assim definidas são denotadas por

\[w(x)=x^lL_\nu^{2l+1}(x)\]

Não é difícil verificar que \(L_\nu^{2l+1}(x)\) satisfaz a equação diferencial

\[x\frac{d^2 u}{dx^2}+\left(2l+2-x\right)\frac{du}{dx}+\nu u=0\]

As soluções elementares da equação radial, sendo \(A\) uma constante, são dadas por

\[g_{l,\nu}(x)=Ax^le^{-x/2}L_\nu^{2l+1}(x)\]

Os polinómios \(L_\nu^{2l+1}(x)\) obtêm-se com base na seguinte identidade

\[L_\nu^{2l+1}(x)=\frac{e^x x^{-(2l+1)}}{\nu!}\frac{d^\nu}{dx^\nu}\left(e^{-x}x^{\nu+2l+1}\right)\]

e satisfazem a seguinte relação de ortogonalidade

\[\int_0^\infty{x^{2l+2}e^{-x}L_\nu^{2l+1}(x)L_{\nu'}^{2l+1}(x)dx}=\left\lbrace\begin{array}{ll}\frac{(2l+1+\nu)!}{\nu!}(2\nu+2l+2), & \nu=\nu'\\ 0, & \nu\ne\nu'\end{array}\right.\]

Ao invés do inteiro positivo \(\nu\), considera-se o número quântico \(n=\nu+l+1\). A função radical escreve-se como

\[R_{n,l}(r)=\sqrt{\frac{(n+l)!}{2n(n-l-1)!}\left(\frac{2}{a_0n}\right)^3}\left(\frac{2r}{a_0n}\right)^le^{-\frac{r}{a_0n}}L_{n-l-1}^{2l+1}\left(\frac{2r}{a_0n}\right)\]

onde

\[a_0=\frac{4\pi\varepsilon_0\hbar^2}{\mu e^2}\]

A função assim definida satisfaz a condição de ortogonalização

\[\int_0^\infty{r^2R_{n,l}(r)R_{n',l'}(r)dr=\left\lbrace\begin{array}{ll}1, & n=n'\\ 0, & n\ne n'\end{array}\right.}\]

Note-se que se tem de verificar as condições para os números quânticos

\[\begin{array}{lllll}n=1, & 2, & 3, & 4, & \cdots\\ l=0, & 1, & 2, & \cdots, & n-1\\ m=0, & \pm 1, & \pm 2, & \cdots, & \pm l\end{array}\]

A forma geral da solução da equação de onda independente do tempo é

\[\psi(X,Y,Z,r,\theta,\varphi)=e^{i\left(\sigma_XX+\sigma_YY+\sigma_ZZ\right)}R_{n,l}(r)Y_{l,m}(\theta\varphi)\]

A função de onda associada ao movimento do centro de massa do átomo é habitualmente desconsiderada dado que é possível determinar a sua posição independentemente do seu estado interno.

Dado que, no estado de equilíbrio, o electrão assume um estado estacionário, a sua energia deverá variar com o número quântico \(n\) de acordo com

\[\mathcal{E}_n=-\frac{e^2}{8\pi\varepsilon_0a_0n^2}\]

A função de onda associada a este estado será dada, portanto, pela soma

\[\psi(r,\theta,\varphi)=\sum_{l=0}^{n-1}{R_{n,l}(r)\sum_{m=-l}^l{a_{l,m}Y_{l,m}(\theta,\varphi)}}\]

onde os coeficientes \(a_{l,m}\) se podem determinar com o auxílio das propriedades de ortogonalidade.