terça-feira, 20 de agosto de 2024

Consequências da primeira e segunda leis da termodinâmica para sistemas reversíveis

A primeira lei da termodinâmica assenta no princípio de que o trabalho pode ser convertido em calor e o calor em trabalho segundo um relação de proporcionalidade. A produção de fogo por fricção ou o funcionamento de máquinas a vapor são exemplos que poderão servir como justificação empírica. A constante de proporcionalidade que permite dar uma medida do trabalho necessário para produzir uma determinada quantidade de calor é unitária se se escolher convenientemente as unidades calorimétrica e de trabalho. Não serão aqui detalhados os processos de medição de quantidades de calor transferidas ou do trabalho realizado nas referidas unidades nem as demonstrações experimentais deste princípio. Debater-se-á apenas as suas consequências.

Se a um sistema for fornecida uma quantidade de calor \(dQ\), esta será usada para aumentar o calor interno \(H\) bem como para realizar trabalho \(L\) sobre as moléculas quando se movimentam contra as forças de coesão. Em equação, tem-se

\[dQ=dH+dL\]

Se, além disso, lhe for impresso trabalho externo \(dW\), vem

\[dQ=dH+dL+dW\]

Sendo conservativas as forças intermoleculares, a variação da função \(L\) em termos das variáveis termodinâmicas não dependerá do caminho seguido pelo sistema. Caso contrário, seria possível obter ou consumir trabalho sem o correspondente consumo ou ganho de calor, hipótese que é considerada impossível do ponto de vista teórico. Com efeito, ainda nenhuma experiência foi concebida que tenha permitido refutá-la. É claro que o mesmo se deverá passar com o calor interno \(H\). Designa-se por energia interna a soma

\[U=H+L\]

que, tratando-se de uma quantidade conservativa, é total o seu diferencial \(dU\). A primeira lei da termodinâmica é, portanto, escrita como

\[dQ=dU+dW\]

Nenhuma consideração termodinâmica permite concluir que \(dQ\) ou \(dW\) sejam diferenciais totais. As quantidades de calor que permitem levar um sistema termodinâmico de um estado inicial a um estado final podem ser diferentes entre si quando são considerados caminhos alternativos desde que os trabalhos externos também o sejam de modo que as diferenças sejam compensadas.

A ideia física subjacente à segunda lei da termodinâmica é mais intrincada e está intimamente relacionada com uma espécie de equivalência que se pode considerar sobre máquinas térmicas reversíveis que trabalham sobre reservatórios a diferentes temperaturas. Fiz um pequeno resumo no texto que coloquei enlinha há anos atrás, Máquinas térmicas e entropia. Do ponto de vista matemático, estabelece-se que existe um factor integrante \(T\) que permite tornar \(dQ\) num diferencial total \(dS\),

\[dS=\frac{1}{T}dQ\]

que recebe a designação de entropia. Tratando-se de um diferencial total, se o sistema termodinâmico reversível evoluir de modo que retorne ao mesmo estado inicial depois de completar um circuito, então \(dS=0\). Se o sistema for irreversível essa identidade não se verifica. No entanto, se se assumir mais uma vez que não é possível obter trabalho sem consumo de calor então, para sistemas arbitrários, é verdade que \(dS\ge 0\).

Suponha-se que o estado do sistema é descrito por uma equação do tipo \(f(p,v,T)=0\) que permite escrever, por exemplo, a pressão \(p\) como função da temperatura absoluta \(T\) e do volume \(v\). A energia e a entropia poderão, portanto, ser dadas como funções destas duas quantidades. Sendo \(dU\) e \(dS\) diferenciais totais, valem as condições

\[\left\lbrace\begin{array}{l}D_{Tv}U=\frac{\partial^2 U}{\partial v\partial T}-\frac{\partial^2 U}{\partial T\partial v}=0\\ D_{Tv}S=\frac{\partial^2 S}{\partial v\partial T}-\frac{\partial^2 S}{\partial T\partial v}=0\end{array}\right.\]

Da equação \(dQ=dU+dW\) obtém-se

\[D_{Tv}Q=D_{Tv}W\]

Se a força externa for constante ao longo da superfície do volume que contém o gás então \(dW=pdv\). Assim,

\[\left\lbrace\begin{array}{l}\frac{\partial W}{\partial  v}=p\\ \frac{\partial W}{\partial T}=0\end{array}\right.\]

e, portanto,

\[D_{Tv}W=-\frac{\partial p}{\partial T}\]

Por seu turno, da equação \(dQ=T dS\) e do facto de \(dS\) ser um diferencial total, tem-se

\[D_{Tv}Q=-\frac{\partial S}{\partial v}=-\frac{1}{T}\frac{\partial Q}{\partial v}\]

A combinação de ambas as equações permite obter

\[\frac{\partial Q}{\partial v}=T\frac{\partial p}{\partial T}\]

No caso dos gases ideais a equação de estado, determinada a partir de resultados experimentais, é dada por \(pv=RT\). Daqui segue-se que

\[\frac{\partial p}{\partial T}=\frac{R}{v}=\frac{p}{T}\]

que, quando inserido na equação anterior, proporciona

\[\frac{\partial Q}{\partial v}=p=\frac{\partial U}{\partial v}+p\]

em que a segunda igualdade resulta directamente da equação associada à primeira lei da termodinâmica para este caso especial. Desta equação resulta que, no caso dos gases ideiais quando considerados sobre o domínio dos processos reversíveis,

\[\frac{\partial U}{\partial v}=0\]

e, portanto, a energia interna depende apenas da temperatura. Designa-se por capacidade térmica a volume constante a quantidade

\[C_v=\frac{\partial U}{\partial T}=\frac{\partial Q}{\partial T}\]

que mede o calor que é necessário fornecer ao sistema para que a sua temperatura aumente de um determinado valor, mantendo constante o volume. Assume-se também que não depende da temperatura, resultado em harmonia com o que se observa experimentalmente nas situações mais comuns. A equação associada à primeira lei da termodinâmica advém, atendendo à equação de estado dos gases ideais, na forma

\[dQ=C_vdT+\frac{RT}{v}dv\]

Suponha-se que se evolui o sistema, mantendo a pressão constante \(p_0\). Da equação dos gases ideais resulta que o volume terá de ser directamente proporcional à temperatura, isto é,

\[T=\frac{p_0}{R}v\]

A substituição na equação associada à primeira lei permite obter

\[dQ=\left(C_v+R\right)\frac{p_0}{R}dv\]

cuja integração proporciona a medida do calor que deve ser fornecido para que o sistema altere o seu volume proporcionalmente à temperatura, mantendo constante a pressão,

\[Q=\left(C_v+R\right)\frac{p_0}{R}\left(v-v_0\right)\]

Se se considerar a equação dos gases ideais para escrever \(v\) como função de \(T\), a expressão anterior reduz-se a

\[Q-Q_0=\left(C_v+R\right)\left(T-T_0\right)\]

Neste caso, observa-se que

\[\frac{d Q}{dT}=C_v+R=C_p\]

corresponde à capacidade térmica a pressão constante que mede a quantidade de calor que é necessário fornecer ao sistema para que a sua temperatura aumente de um determinado valor, mantendo a pressão constante. As variações da energia interna e entropia são dadas, respectivamente por

\[U-U_0=C_v\left(T-T_0\right)=\frac{C_vp_0}{R}\left(v-v_0\right)\]

e

\[S-S_0=C_p\log{\frac{T}{T_0}}=C_p\log{\frac{v}{v_0}}\]

já que

\[dS=\frac{dQ}{T}=C_p\frac{dT}{T}\]

Suponha-se agora que o sistema evolui de modo a que a temperatura seja mantida constante durante o processo. Neste caso, a equação de estado dos gases ideais permite escrever a  pressão em termos do volume como

\[p=\frac{RT_0}{v}\]

e a integração da equação associada à primeira lei da termodinâmica, nomeadamente

\[dQ=RT_0\frac{dv}{v}\]

permite obter

\[Q-Q_0=RT_0\log{\frac{v}{v_0}}=RT_0\frac{p_0}{p}\]

Já que \(dU=C_v dT\), a energia interna mantém-se constante \(U=U_0\). A entropia é dada por

\[S-S_0=\frac{Q-Q_0}{T_0}=R\log{\frac{v}{v_0}}=R\frac{p_0}{p}\]

Se, durante o processo, o volume for mantido constante, a pressão pode ser encarada como função da temperatura através da relação

\[p=\frac{R}{v_0}T\]

O calor transferido e a energia interna vêm dados por

\[Q-Q_0=U-U_0=C_v\left(T-T_0\right)=\frac{C_vv_0}{R}\left(p-p_0\right)\]

É o que seria de esperar, uma vez que, sendo o volume constante, não é realizado qualquer trabalho sobre o sistema e, portanto, a energia interna varia do mesmo modo que o calor fornecido. A entropia, por seu turno, é dada por

\[S-S_0=C_v\log{\frac{T}{T_0}}=C_v\log{\frac{p}{p_0}}\]

Por fim, considera-se o caso das designadas transformações adiabáticas que são processos nos quais não estão envolvidas quaisquer trocas de calor com o meio exterior. Do ponto de vista matemático tem-se a equação \(dQ=0\) que, jutamente com a equação de estado dos gases ideais, permite escrever, por exemplo, o volume em função da temperatura, não esquecendo que, nas equações atrás usadas, se tem considerado sempre que a pressão é função destas duas últimas variáveis. Ora, neste caso é verdade que

\[dQ=C_vdT+\frac{RT}{v}dv=0\]

onde a pressão foi substituída pela sua expressão em termos de \(v\) e \(T\) a partir da equação de estado dos gases ideais. A integração da equação permite obter

\[\left(\frac{T}{T_0}\right)^{C_v}=\left(\frac{v_0}{v}\right)^R\]

Segue-se da equação de estado para os gases ideais que

\[\frac{p}{p_0}\frac{v}{v_0}=\frac{T}{T_0}\]

a qual pode ser usada para obter a relação entre volume e pressão, considerando a temperatura como dependente, ou temperatura e pressão, assumido o volume como dependente. É imediato verificar que a entropia não sofre variação neste caso e, portanto, \(S=S_0\). É por esta razão que a transformação adiabática é muitas vezes referida como isentrópica por ser mantida constante a entropia. A energia interna, por seu turno, é dada por

\[U-U_0=C_v\left(T-T_0\right)=C_vT_0\left(\left(\frac{v_0}{v}\right)^{\frac{R}{C_v}}-1\right)\]

De um modo geral, tem-se sempre

\[U-U_0=C_v\left(T-T_0\right)\]

pois a variação de \(U\) não dependerá do caminhos seguido pelo sistema. O mesmo acontece com a entropia cuja equação diferencial se escreve na forma

\[dS=C_v\frac{dT}{T}+R\frac{dv}{v}\]

Não é tarefa árdua verificar que se trata efectivamente de um diferencial total pois

\[\left\lbrace\begin{array}{l}\frac{\partial S}{\partial T}=\frac{C_v}{T}\\ \frac{\partial S}{\partial v}=\frac{R}{v}\end{array}\right.\]

Da integração do diferencial obtém-se

\[S-S_0=C_v\log{\frac{T}{T_0}}+R\log{\frac{v}{v_0}}\]

Das expressões obtêm-se imediatamente os valores das variações da energia interna e da entropia, considerando apenas os valores iniciais e finais do estado do sistema pois não dependem do caminho intermédio.

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